Ilusões da República Bananeira

A intelligentsia das repúblicas bananeiras tem grandes esperanças de libertar o seu país de um destino trágico num curto prazo. Talvez por isso alimente algumas ilusões sobre a realidade em que vivem. Por vezes acreditam que parte das elites são nacionalistas, “republicanas” e tem um projeto de nação. Acreditam que existem militares legalistas, que o país pode ter um desenvolvimento soberano e democrático e ser bem aceito pelos países hegemônicos como um forte protagonista no cenário mundial.
No Brasil, embora exista um sociólogo que chamou a atenção para este fato (Jessé de Souza, em “A tolice da inteligência brasileira”), ele não foi levado muito a sério.  A vaidade presente em sua argumentação se chocou com a vaidade do meio acadêmico. Na guerra de egos, uma boa  provocação caiu no limbo.
Parece que a máxima de uma poesia do compositor Aldir Blanc não se confirma: “o tempo vence toda a ilusão” (em Agnus Sei, parceria com João Bosco).
Na maior república bananeira do planeta, a ilusão continua vencendo, e de goleada.
Talvez por isso, quando se fala de um golpe no Brasil, três argumentos que subestimam essa possibilidade são frequentes:
1) as FFAA não entrariam numa aventura;
2) o bozo já não é mais funcional para a elite econômica;
3) Não haveria apoio internacional (leia-se EUA, a quem os milicos brasileiros lambem as botas).
Obs: não citamos aqui o clássico argumento “as instituições estão funcionando”, por ser óbvio o quanto ele é ridículo.
Comecemos por desmontar o último argumento.
Os EUA, com os democratas no poder, não tem interesse na permanência do atual presidente, um sabujo trumpista, o que é uma verdade. Porém isto é só metade da história. A permanência de um ogro no poder é bem conveniente para os interesses geopolíticos e econômicos dos EUA.
O BRICS permanecerá em banho-maria e a manutenção da nossa matriz energética em mãos privadas estará assegurada. O ataque ao meio-ambiente daria aos democratas a chance de continuar com suas condenações retóricas e posar de bom moço para o público interno e externo.
Ora, quanto aliados bizarros o Tio Sam não apoiou ao longo da história?
Se quisessem pôr um fim a este personagem repulsivo que ocupa a presidência, certamente o fariam. A NSA tem material de sobra pra isso (o caso do assassinato da Marielle seria só um exemplo). Se a oposição fosse a tal “terceira via” sonhada pela elite brasileira, o dito cujo já teria sido destroçado.
O fato é que um golpe aqui seria duramente condenado, mas seria funcional para os EUA. O jogo político seria reconfigurado e poderiam surgir alternativas, dependendo do desenlace do putsch.
A resistência da elite econômica ao bozo deve ser lida com muitas reservas. Nos últimos quatro anos empresários, agroexportadores e farialimers aplaudiam efusivamente o presidente nos eventos em que ele participava. Afinal de contas, as reivindicações destas classes foram em grande parte contempladas. O SUS só não foi desmontado por conta da pandemia. No restante, a privatização dos serviços públicos está em pleno andamento.
Nossas elites recuam pensando muito mais na sua imagem perante as elites globais. Se incomodam com o fato de serem vistas como o que são: uma elite colonial caricata. Claro que tem também o cálculo econômico, no risco que poderia trazer para os seus lucros astronômicos. Nestes últimos anos muita coisa sumiu da pauta econômica dos colonistas (termo criado pelo saudoso jornalista Paulo Henrique Amorim). Responsabilidade Fiscal e Risco Brasil, que era o foco de todos os dias, viraram apenas observações um tanto incômodas. Os lucros da elite pouco foram afetados
Deixamos a parte grotesca para o final: o que pensam os militares. No caso, os da ativa, que possuem o comando das tropas. Reza a lenda que militares da ativa não podem se manifestar politicamente. Porém, em tempos de redes sociais, este pensamento fica difícil de ser ocultado. E o que isto revela é que os militares da ativa pensam exatamente igual aos da reserva, que se manifestam sem pudores nas publicações dos clubes militares. Não chega a surpreender, pois todos foram doutrinados pela mesma escola, a mesma formatação foi aplicada ao cérebro de toda a oficialidade.
A insistência em desacreditar as urnas eletrônicas chega a ser impressionante. O discurso hipócrita de “contribuir para aperfeiçoar o sistema” já caiu por terra . É uma clara ação de sabotagem. No caso de uma provável derrota eleitoral desta casta, as portas estariam abertas para o caos de fanáticos e milicianos, hoje fortemente armados pela complacência deliberada das FFAA.
Com o improvável sucesso do “Plano A”, ganhar as eleições dentro das regras, só resta tumultuar e provocar uma virada de mesa. É exatamente isto que está em gestação. Nenhuma carta com milhões de assinaturas vai impedir isto, por mais louvável que seja a iniciativa.
A recusa veemente dos militares em se juntarem ao ato do 7 de setembro é somente para não comprometer a imagem de “isenção” quando tiverem que conter a sedição dos fanáticos e milicianos (incitados e armados pela omissão deliberada dos militares). Afinal, eles estão do mesmo lado. Uns com farda, outro sem.
Talvez este blogueiro esteja delirando. Citando outro verso do compositor Aldir Blanc, “não tenho o vício da ilusão/hoje eu vejo as coisas como são” (Vitória da Ilusão, em parceria com Moacyr Luz).
PS: Muitos leitores poderão achar que este blog está semeando “teorias da conspiração” que em nada ajudam ao processo democrático. É uma questão de perspectiva. Teoria conspiratória seria afirmar que os milicos planejam uma operação Jacarta: um golpe que deixa o trabalho sujo para as milícias. Para saber o que seria isso, sugiro o premiado documentário “O Ato de Matar”, de Joshua Oppenheimer, legendado no youtube. O golpe na Indonésia em 1965 é o sonho dourado do celerado que acha que a ditadura militar deveria ter “eliminado  uns 30 mil”. Na Indonésia foram 500 mil. Se uma barbárie dessa dimensão é algo impensável nos dias de hoje, isto não impede uma versão clean, um método “Jacarta 4.0”. A conferir.

BANANAS TERRORISTAS: UM ALERTA

Em continuidade a publicação anterior: percebemos que o jogo de dissimulação dos militares golpistas (perdão pelo pleonasmo) continua: Um militar reformado condena a realização de ato político no dia do bicentenário da independência; um comandante da ativa volta a  pedir ao TSE o acesso ao código fonte da urna eletrônica que já possuem; avança no Congresso Projeto de Lei que esvazia poder dosGovernadores sobre ocomando das Polícias Estaduais; o serviço de inteligência do governo “vaza” que há risco de atentados terroristas no 7 de setembro, cuja convocação nas redes sociais se dá com a imagem de uma granada  e mm pedido para o “capitão” soltar o pino…O golpe dos generais da maior república bananeira do mundo segue a todo vapor. A grande imprensa finge que não é sério…

O PERIGO DO TERROR MILITAR

Em 1968, a ditadura militar brasileira estava sob forte pressão. Várias manifestações pediam a devolução do poder para os civis e a volta da democracia. Num único dia, 21 de junho, a sexta-feira  sangrenta, 28 manifestantes foram mortos pela repressão.

Em reação à crescente mobilização popular, militares montaram uma operação para realizar atos terroristas. O plano incluía explodir bombas em lojas, bancos e embaixadas para, num ato final, explodir o Gasômetro do Rio de Janeiro e a represa de Ribeirão da Lajes. Seriam milhares de mortos.

O plano era colocar a culpa na oposição. As principais lideranças seriam presas e assassinadas.

Este crime macabro só não foi colocado em prática graças a resistência do Capitão da Aeronáutica Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (conhecido como Sérgio “Macaco”). Ele se rebelou e impediu este atentado bárbaro.

Nenhum militar foi punido. Somente o heróico capitão, que foi cassado e expulso das forças armadas.

Frustrado o plano terrorista dos militares, logo a seguir foi decretado o Ato Institucional No. 5, que deu poder para que os militares pudessem prender, torturar, cassar e exilar milhares de brasileiros nos anos seguintes.

Em 1981 a história se repetiu.  A sociedade brasileira exigia a volta da democracia mas muitos militares não queriam que o poder voltasse para os civis.

Mais uma vez planejaram uma escalada terrorista para colocar a culpa na oposição. Explodiram bombas em bancas de jornal, na Câmara de Vereadores e na Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro.

O ato final dos militares terroristas seria o atentado no Riocentro, onde vários artistas e mais de vinte mil jovens estavam em um show pela volta da democracia. O plano falhou porque uma das bombas explodiu no carro onde estavam os militares que iriam lançar os explosivos no público. Um sargento morreu na hora e um capitão ficou gravemente ferido.

Os militares abafaram e arquivaram o caso. O sargento foi enterrado com honras de herói e o capitão terrorista se aposentou como coronel.

Em 1986 um outro oficial, um tenente insatisfeito com os salários da carreira militar, planejou explodir bombas em quartéis e na adutora do Guandu. Em vez de ser punido com a prisão e a expulsão do Exército, foi reformado com a patente de capitão. Ele entrou para a política e fez carreira como Deputado.

Em 2018 os militares decidiram apoiá-lo  na eleição para a Presidência da República. Vitoriosos, ocuparam mais de seis mil cargos civis no governo, algo inédito na história do Brasil. No Ministério da Saúde foram os responsáveis pela gestão desastrosa durante a epidemia de Covid 19,  que tirou a vida de milhares de brasileiros.

Agora teremos novas eleições. Para tumultuar o processo democrático,as Forças Armadas  lançam dúvidas sobre as urnas eletrônicas.

Será que os militares, confiantes na impunidade para os seus crimes,  planejam recorrer mais uma vez ao terrorismo?  Para preservar os seus privilégios às custas do sofrimento do povo brasileiro serão capazes de sacrificar vidas inocentes?

O celerado que preside o país, programou para a comemoração do bicentanario da independência, um ato político com intenção golpista. Espera-se que, no dia 7 de setembro próximo, ocorra uma grande manifestação que descambe para a violência aberta. Não é um temor desprovido de razão.

O terror de direita, que já havia atuado em períodos anteriores à ditadura, voltou a agir a partir de janeiro de 1980, coincidindo com o retorno dos anistiados à atividade política. Como aconteceu em 1968, com os ataques do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), e em 1976, com a Aliança Anticomunista Brasileira (AAB), os atentados deste período ficariam impunes. Abaixo, uma lista dos ataques da “direita explosiva” em 1980 e 1981.

1980

  • 18/01 – desativada bomba no Hotel Everest, no Rio, onde estava hospedado Leonel Brizola.
    ·  27/01 – bomba explode na quadra da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, no Rio, durante comício do PMDB.
    ·  26/04 – bomba explode em uma loja do Rio que vendia ingressos para o show de 1º de Maio.
    ·  30/04 – em Brasília, Rio, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Belém e São Paulo, bancas de jornal começam a ser atacadas, numa ação que durou até setembro.
    ·  23/05 – bomba destrói a redação do jornal “Em Tempo”, em Belo Horizonte.
    ·  29/05 – bomba explode na sede da Convergência Socialista, no Rio de Janeiro.
    ·  30/05 – explodem duas bombas na sede do jornal “Hora do Povo”, no Rio de Janeiro.
    ·  27/06 – bomba explode na sede do Sindicato dos Jornalistas, em Belo Horizonte.
    ·  11/08 – bomba é encontrada em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, num local conhecido por Chororó. Em São Paulo, é localizada uma bomba no Tuca, horas antes da realização de um ato público.
    · 12/08 – bomba fere a estudante Rosane Mendes e mais dez estudantes na cantina do Colégio Social da Bahia, em Salvador.
    ·  27/08 – explodem três cartas-bombas no Rio: na OAB, matando a secretária da presidência, Lyda Monteiro; no gabinete de um vereador do PMDB e na redação do jornal “Tribuna da Luta Operária”.
    ·  04/09 – desarmada bomba no largo da Lapa, no Rio.
    ·  08/09 – explode bomba-relógio na garagem do prédio do Banco do Estado do Rio Grande do Sul, em Viamão.
    ·  12/09 – duas bombas explodem em São Paulo: uma fere duas pessoas em um bar no bairro de Pinheiros e a outra danifica automóveis no pátio da 2ª Cia. de Policiamento de Trânsito no Tucuruvi.
    ·  14/09 – bomba explode no prédio da Receita Federal em Niterói (RJ).
    ·  14/11 – três bombas explodem em dois supermercados do Rio.
    ·  18/11 – bomba explode e danifica a Livraria Jinkings, do ex-deputado e dirigente comunista Raimundo Jinkings, em Belém.
    ·   08/12 – bomba incendiária destrói o carro do filho do ex-deputado Raimundo Jinkings, em Belém.

1981

  •  05/01 – outro atentado a bomba em supermercado do Rio.
    ·  07/01 – bomba explode em ônibus a serviço da Petrobras na Cidade Universitária, no Rio.
    ·  16/01 – bomba danifica relógio público instalado no Humaitá, no Rio.
    ·  02/02 – bomba colocada no aeroporto de Brasília é encontrada antes de explodir.
    · 26/03 – atentado às oficinas do jornal “Tribuna da Imprensa”, no Rio.
    · 31/03 – bomba explode no posto do antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em Niterói (RJ).
    ·  02/04 – atentado a bomba na residência do deputado Marcelo Cerqueira, no Rio.
    ·  03/04 – explosão de uma bomba destrói parcialmente a Gráfica Americana, no Rio.
    ·  28/04 – grupo Falange Pátria Nova destrói, com bombas, bancas de jornais de Belém.
    ·  30/04 – explosão mata um agente do DOI-Codi e fere outro, no momento em que preparavam atentado contra 20 mil pessoal no show de 1° de Maio no Riocentro.
  • FONTE: http://memorialdademocracia.com.br/card/direita-explosiva-faz-ataques-em-serie#card-215

Bananas Traiçoeiras (a arte da dissimulação militar)

Há décadas – desde a campanha da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Itália – que o Brasil não combate em guerras. Apenas esteve em missões de paz ONU e atuou de forma vergonhosa e subserviente na invasão da República Dominicana pelos EUA em 1965. Sem participar de combates efetivos, os atuais comandantes militares brasileiros só conhecem a guerra pelos livros. São estudiosos de estratégias e táticas militares, mas que nunca as colocaram em prática num campo de batalha.

Na falta de um inimigo externo real, praticam os seus conhecimentos contra o que eles chamam de “inimigo interno”. Na verdade, apenas uma desculpa esfarrapada para assegurar a permanência deles no poder e para a garantia de privilégios corporativos negados à maioria da população civil. Este é o verdadeiro objetivo estratégico da “guerra” que eles travam no Brasil, travestidos com uma anacrônica retórica de combate ao comunismo.

Entre as táticas utilizadas, está a dissimulação. Ocultar suas reais intenções para induzir os seus adversários a subestimá-los e incorrer em erros.

Neste mês de julho foram disseminadas (melhor dizer “plantadas”) na imprensa várias notícias com esta finalidade de distração. E esta indução ao erro parece estar surtindo efeito. Lamentavelmente.

Primeiramente, o Ministro da Defesa manifestou-se de forma patética, duvidando da confiabilidade das urnas eletrônicas. A análise superficial diz que foi apenas um reflexo da ambição prosaica das FFAA de tutelar o processo eleitoral, algo inédito na história.  Na verdade, a intenção era muito mais a de desacreditar o STF e TSE perante o fanático eleitorado bolsonarista.

Provocada esta cizânia, vieram outros atos coordenados (que nada têm de aleatórios ou impensados)

– Comandantes militares não vão a encontro com os Embaixadores convocado pelo Presidente que atacou as urnas eletrônicas. Para os analistas de plantão, seria um sinal de que não há da parte deles concordância com o ataque à lisura do processo eleitoral;

– Circula uma notícia de que os militares estariam negociando com o Lula a manutenção do orçamento de suas pastas e as condições privilegiadas da aposentadoria militar. A imprensa viu nisto o avanço na corporação militar de uma aceitação da vitória do Lula;

– Segue-se uma nota conjunta dos comandantes militares em que refutam a existência de divisões internas e reafirmam um respeito, meramente retórico, às regras democráticas;

– É emitida nota da Embaixada dos EUA reafirmando a confiança no processo eleitoral brasileiro. Para a grande imprensa seria um recado aos militares de que o Tio Sam não apoiará um golpe militar;

– São publicadas notas de associações da Polícia Federal e da ABIN afirmando a sua confiança nas urnas eletrônicas;

– Banqueiros e empresários assinam um manifesto pela democracia. Por outro lado, circulam notícias de que setores do agronegócio se aproximam de Lula;

– O Ministro da Defesa comunica que irá assinar uma carta compromisso da OEA de respeito à democracia.

Finalmente, a voz e o pensamento da elite brasileira – os editoriais dos jornalões – passaram a condenar com mais veemência os arroubos golpistas do Presidente. Tudo em consonância com as análises de seus “especialistas”, que afirmam que não existem condições para um golpe. Argumentam que as FFAA não vão entrar numa aventura, que o capital financeiro e industrial também não, o agronegócio estaria se movimentando na mesma direção, uma condenação internacional é tida como certa (leia-se EUA) e as instituições seguirão firmes na defesa do sistema eleitoral (STF e TSE).

Quem não te conhece é que te compra, diz o ditado.

De uma hora para outra, todos os apoiadores que até dias atrás riam e urravam diante das bravatas do Presidente em eventos públicos (dos Faria Limers, do Agronegócio, da FIRJAN, das Associações Comerciais e outros mais), parecem ter mudado de opinião.

Não vamos nos debruçar sobre o oportunismo e hipocrisia da grande imprensa e destes atores políticos “recém-convertidos” (“-Acredite, se quiser”, diria Jack Palance). São apenas as classes frustradas com a “terceira via” que não vingou. E as críticas que fazem ao Presidente são até leves, se comparadas ao massacre midiático que dirigiram à Lula e à Dilma num passado recente. No fundo, eles queriam um Presidente com uma agenda neoliberal igual a do governo atual, mas que respeitasse um mínimo de regras de etiqueta e soubesse comer de garfo e faca.

Bolsonaro se tornou disfuncional. Foi útil para o trabalho de desmonte da seguridade social e trabalhista, da liberação da grilagem e da mineração, do desmonte da regulação estatal. Mas agora ele se tornou um péssimo cartão de visitas para os negócios da elite econômica.

O que vale a pena considerar mais seriamente é aquele personagem que sempre é o fiel da balança numa república bananeira: as Forças Armadas (sempre é bom lembrar que somos a maior República das Bananas do planeta, como já foi dito aqui).

Não é de hoje que o atual presidente expressa claramente as suas intenções golpistas e sugere que terá o apoio das FFAA, das quais é o “comandante supremo”. Para garantir esta fidelidade, ele teria trocado todo o comando militar no ano passado, algo que nunca ocorreu na história da República.

Não há razão para ilusões. Os atuais comandantes militares são bolsonaristas até o último fio de cabelo. Basta ler as diversas manifestações públicas deles, tanto na imprensa quanto nas redes sociais. São limitados cultural e intelectualmente, mas não são burros. Existe sim uma inteligência militar. Não devemos subestimá-los. Sabem muito bem o que fazem. [i]

Se o assunto é política, a palavra dos militares não tem qualquer credibilidade.  E quando reafirmam o compromisso com a legalidade, não tem como deixar de ver nisto um tanto de cinismo e deboche.

Vamos recordar alguns fatos históricos. O primeiro golpe militar do Brasil – a Proclamação da República – foi liderada por marechais monarquistas, que traíram o Imperador. Queriam mais poder para os militares na máquina do Estado.

No livro de memórias de Almino Afonso, sobre o golpe de 1964, o autor reproduz um diálogo de Jango com seus chefes militares. Eles lhe informaram que estava tudo normal, que o risco de sublevação não existia. O chefe da Casa Militar, General Assis Brasil, era um legalista que não tinha acesso aos planos golpistas e foi traído pelos colegas de farda. O mesmo que aconteceria do Chile de Salvador Allende, cujo general legalista Carlos Prats – depois assassinado – acreditava que Pinochet era confiável. Os exemplos são muitos para quem quiser se debruçar sobre este tema.

Os golpistas militares agem nas sombras e dissimulam permanentemente suas intenções.

Os militares sabem que, no mundo de hoje, não há mais espaço para um golpe militar clássico, as típicas quarteladas que infestaram a América Latina nos anos 60/70 do século passado. Para este tipo de golpe, não há qualquer chance de obter apoio dos EUA e das maiores democracias ocidentais.

Também sabem que a continuidade de Bolsonaro é inviável. Ele já cumpriu o papel que lhe cabia e pode ser descartado. Cavalo de Tróia das FFAA, ganhará a impunidade por gratidão pelos serviços prestados. A mesma impunidade que foi dada ao Brigadeiro Burnier, ao Coronel Ustra, para centenas de torturadores e aos terroristas militares do atentado ao Riocentro.

Vamos ao X da questão: O golpe planejado não é para manter Bolsonaro no poder, mas para impedir um novo governo do Lula.

Os militares sabem que teriam o apoio entusiasmado da elite econômica para isso. E, em tese, até mesmo dos EUA. O Partido Democrata repudia a sabujice de Bolsonaro ao Donald Trump, é certo.  Mas também não gosta da ideia de ver um líder com o carisma de Lula de volta ao cenário internacional. Um presidente que fortaleça a soberania nacional e o BRICS, num momento em que a unipolaridade norte-americana está ruindo, é algo que deixa o Tio Sam de cabelo em pé.

Aí vocês podem se perguntar: Como fariam isso sem recorrer a uma clássica quartelada? Ora, em tempos de guerras híbridas, são muitas as alternativas. Articulistas na web já fizeram várias especulações: da cassação do registro do Bolsonaro para dar lugar a uma terceira via até o assassinato do Lula. De todas as teses que circulam, a mais plausível é a que diz que os militares deixarão de forma proposital que Bolsonaro estimule a insurreição de seus seguidores fanáticos e armados. Diante do caos, a s FFAA se apresentariam como garantidoras da Lei e da Ordem.  [ii]

Faz todo sentido. Nos últimos anos assistimos a livre disseminação de armamentos pesados e munição entre a população civil. Foram eliminados inclusive formas de rastreio do uso de munições, além de um relaxamento nas licenças que permitiu até que pessoas com ficha criminal tivessem acesso a estas armas.  Em pouco tempo, os CACs – clubes de colecionadores de armas, atiradores profissionais e caçadores – se multiplicaram e adquiriram um poder de fogo inimaginável. E isto não se deu por irresponsabilidade, incompetência ou negligência das FFAA: era este mesmo o plano. [iii]

No momento em que este artigo está sendo escrito, realiza-se em Brasília a 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas. Uma insólita coincidência.  Na abertura, o ministro da Defesa do Brasil, bolsonarista roxo, anunciou que ao final do encontro será assinada uma declaração em que será reafirmado o compromisso com a “Carta Democrática Interamericana, e seus valores, princípios e mecanismos”, da Organização dos Estados Americanos, OEA.

Curiosamente, a mesma OEA que, de forma quase pornográfica, avalizou o golpe na Bolívia com base numa falsa acusação de fraude eleitoral, desencadeada por grupos armados de extrema-direita e motins das polícias. Após um ano, o golpe fracassou. Inicialmente conseguiu afastar a esquerda do poder, mas as eleições lhe devolveram o mandato.

A guerra híbrida teve sucesso em Honduras, no Paraguai, no Brasil e na Bolívia. Porém, com exceção do Paraguai, foram vitórias efêmeras. As últimas eleições no continente demonstram que esta estratégia já não funciona mais. Até a antes inexpugnável Colômbia surpreendeu. Uma versão 4.0 do “método Jacarta” está em elaboração. [iv]

Se a oposição e os movimentos populares não se anteciparem, uma intentona golpista acontecerá. No dia 7 de setembro ou no dia 2 de outubro, com consequências imprevisíveis e alto risco de derramamento de sangue.

Teoria da conspiração? O tempo dirá.

Conhecemos este filme e o seu final. Sabemos o que eles fizeram no verão passado.

Charge do genial André Dahmer:

PS: No momento em que este artigo era finalizado, um jornalista do UOL –  outro reconvertido que difundiu falácias num verão passado, não devemos esquecer – foi muito feliz ao demonstrar a tática de dissimulação dos militares: https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2022/07/28/nao-caiam-na-conversa-do-general-sua-declaracao-e-golpista-nao-garantista.htm

[i] A nota do General Luiz Eduardo Rocha Paiva expressa bem o pensamento do generalato brasileiro https://jornalggn.com.br/politica/eleicoes-politica/a-comprovacao-dos-propositos-golpistas-do-ministro-da-defesa/

[ii] Um bom resumo destas especulações pode ser lida no artigo de Manuel Domingos Neto : https://www.brasil247.com/blog/futuro-duvidoso

[iii] Alguns artigos publicados recentemente na grande imprensa são preocupantes: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/07/26/cacs-ja-superam-total-de-pms-e-de-integrantes-das-forcas-armadas-em-todo-o-pais.htm

https://oglobo.globo.com/politica/acao-coordenada-por-grupos-bolsonaristas-no-telegram-no-whatsapp-impulsionou-postagens-contra-moraes-nas-redes-sociais-24410853

[iv] Jacarta, capital da Indonésia, denomina o método que em 1996 embasou um golpe brutal e um genocídio sem precedentes pelas mãos de militares e milícias. Para saber mais sobre o método Jacarta é imperdível ver o premiadíssimo documentário “O Ato de Matar”, disponível no Youtube. Aquele país se tornou o “paraíso das milícias”. Também é o título de um livro recentemente lançado no Brasil : https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-metodo-jacarta-outra-historia-da-guerra-fria)

(c) Livre reprodução, parcial ou integral.

BANANAS AGAIN

Os elementos que caracterizam um país como uma república das bananas já foram expostos aqui neste blog. Uma aliança entre uma elite agraria exportadora/extrativista, uma classe política cleptocrata e militares autoritários e limitados intelectualmente.

Mas além das forças das armas, existe uma construção ideológica para sustentar estas bananeiras. Esta construção não é obra da elite agrária, nem de empresários predadores que só pensam em maximizar lucros, nem dos políticos cleptocratas que só querem aumentar o patrimônio e consolidar sua dinastia familiar. De uma forma geral, a ideologia bananeira é obra dos militares, auxiliado por alguns serviçais civis.

O humorista Gregório Duvivier, certa vez dedicou uma edição de seu programa semanal para o que chamou de “ideologia de gene…ral”, um chiste com o delírio da “ideologia de gênero”.

No Brasil, durante a ditadura militar a ideologia bananeira foi explicitada em um livro que ficou conhecido pela sigla ORVIL (livro de trás pra frente), obra “intelectual” da ditadura militar. É um retrato de uma época, marcada pelo contexto da guerra fria. Sem qualquer papel relevante num mundo dividido entre duas potências, os nossos militares se voltaram para um suposto “inimigo interno”, inimigos da potência do ocidente a qual se alinhavam.

Agora temos uma nova versão, mais atualizada. O recém-lançado Plano Brasil, um patético retrato da ideologia bananeira do Brasil atual.

Curioso é que, antes, havia um substrato nacionalista nas formulações dos militares.  Agora ele é meramente retórico, um patriotismo vago, pois abraçaram o liberalismo na sua pior versão. Afinal, o que sempre predominou no Brasil foi um liberalismo mal ajambrado, na verdade um “darwinismo social” disfarçado por uma retórica liberal simplória.

O documento é uma pérola de indigência intelectual. Infelizmente, as instituições (de)formadoras dos militares na atualidade não permitem que surjam um novo Golbery. Mesmo sendo um sustentáculo intelectual do regime ditatorial, havia uma inteligência refinada nos escritos daquele general. Uma qualidade completamente ausente nos documentos militares atuais.

Inúmeros estudiosos e jornalistas tem publicado textos onde desancam as teses deste documento bizarro. É uma tarefa relativamente fácil, convenhamos. Não vamos perder tempo aqui comentando as inúmeras sandices do tal Plano.

Porém, o mais deprimente nas 93 páginas do tal plano é arrogância de seus autores. Nas entrelinhas do documento fica nítido que os militares se veem como uma elite, uma casta superior, acima do bem e do mal, uma reserva moral do país, que por essa razão tem a missão de tutelar a sociedade brasileira.

Eles não tem um pingo de caráter para assumir seus erros e se desculpar pelas inúmeras tentativas de golpes contra a democracia, pelas torturas e execuções, pelo caso Para-Sar, pela bomba do Riocentro. Muito menos pelas compras superfaturadas, de picanha ao Viagra, nem pelo tráfico de cocaína em avião presidencial, do dinheiro público jogado fora na sabidamente ineficaz cloroquina, nem pela gestão estúpida e genocida do Ministério da Saúde em plena pandemia.

São esses que se acham uma elite, uma autodeclarada “reserva moral” que se julgam no direito de tutelar o poder civil e usufruir de benesses que são negadas aos demais cidadãos brasileiros.

Um caso gravíssimo de autismo institucional, quase inacreditável, que seria risível se não fosse trágico.

Nossas FFAA são um caso perdido. Teriam que ser refundadas. Até lá, continuaremos a ser motivo de chacota mundial como a maior República Bananeira do planeta.

Bananas & Cia Ltda.

Recentemente, um dos principais cientistas políticos do país na atualidade, ao comentar o livro do general Villas Boas, se disse impressionado com a limitação intelectual demonstrada pelo oficial que alcançou o mais alto posto da corporação.

O comentário é bem ilustrativo de como é desconhecida a realidade da formação intelectual dos militares brasileiros. O fato detectado pelo cientista não lhe deveria causar surpresa.

Não que não exista uma, digamos assim, “inteligência militar” na caserna: a capacidade de pensar estrategicamente e formular ações táticas. O problema é que o exercício intelectual dos militares, por conta da formação que recebem, opera em limites muito estreitos.

Militares são preparados para a guerra. O binômio hierarquia e disciplina, fundamental para o funcionamento da cadeia de comando, obviamente limita o desenvolvimento da atividade intelectual. Estimular em demasia o pensamento crítico é a base para motins, e nenhum comandante militar deseja correr este risco.

Não há lugar para dissensos numa instituição militar, ao menos para as questões de fundo. Nunca houve e nunca haverá. No Brasil, esta prerrogativa é de um minúsculo “núcleo duro” que, sem qualquer supervisão civil, define conteúdos e métodos da formação militar.

Por isso que as democracias saudáveis só podem existir com a submissão do poder militar ao poder civil. A tutela militar, baseada no mito de uma superioridade moral das FFAA, é coisa típica de repúblicas bananeiras. E o Brasil é a maior de todas.

Nélson Rodrigues dizia que os jovens eram umas bestas, que um Rimbaud só aparecia a cada 300 anos. Parafraseando o dramaturgo, também poderíamos dizer o mesmo dos militares brasileiros, que um Golbery do Couto e Silva só aparece a cada 400 anos.

Num depoimento para o filme documentário “Jango”, do cineasta Silvio Tendler, o general Mourão, que precipitou o golpe partindo com suas tropas de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, revela bem a distância intelectual que separava os típicos oficiais do exército do general Golbery. Disse ele que os generais estavam preparados para enfrentar um longa resistência (pra bom entendedor: estavam preparados para matar muitos brasileiros). E salientou que só Golbery discordava desta avaliação e acertou as previsões. Teria dito: “cai que nem um castelo de cartas”.

Golbery foi um personagem complexo da nossa história. Mentor e cúmplice de muitos crimes, de forte conservadorismo, de alinhamento férreo com a doutrina da guerra fria, Golbery tinha uma formação intelectual sofisticada para os padrões militares. Isso lhe dava a capacidade de fazer uma análise política mais acurada. Sem ele, a barbárie da ditadura militar no Brasil teria tido uma dimensão similar à da praticada no Chile e na Argentina. Graças a ele, o pensamento estreito e vulgar da Escola de Chicago não teve vez por aqui, com Roberto Campos, Simonsen e Delfim Netto no comando da economia. A modernização industrial foi promovida e, com o acordo nuclear assinado com a Alemanha, demonstrou que o alinhamento político não se atrelava à submissão econômica e tecnológica.

Enquanto viveu, Golbery agiu para colocar limites na chamada “linha dura”. Mas não impediu que a mediocridade reinante no generalato acabasse por dominar a formação dos oficiais que hoje comandam o Brasil.

O que torna mais dramático o caso brasileiro é o autismo da caserna, a auto imagem de uma superioridade moral que eles não tem nem nunca tiveram, que faz com que eles se julguem no direito de tutelar o poder civil. Não arredam pé desta visão nem depois de expostos pela gestão criminosa no Ministério da Saúde em plena pandemia. Este autismo, esta falta de noção, é o que permite os frequentes espetáculos bizarros como a tanqueciata, outra demonstração patética de bananismo. Mais uma vez, fomos motivo de piadas pelo mundo afora.

Agora de doer mesmo é a pretensão intelectual destes fardados no poder. O recém-criado IGVB – Instituto General Villas Boas é um exemplo disso. O conteúdo do portal web é um caso clássico de “vergonha alheia”. Começa promovendo um webnário com notórios negacionistas da pandemia. E apresenta um suposto “projeto de nação”, uma coletânea de clichês que parecem ter saído dos artigos da anacrônica revista do Clube Militar.

Alguns incautos tentam separar o pensamento dos oficiais da ativa daqueles que já estão reformados, ignorando que ele é essencialmente o mesmo. Os oficiais da reserva, livres dos constrangimentos e das responsabilidades a que estavam submetidos quando na ativa, expressam sem travas o que pensam.

As patacoadas dos militares brasileiros, se não ocupassem o poder da forma incompetente e irresponsável como o fazem, até seriam engraçadas. Mas elas são apenas o retrato de nossa tragédia, que condena as nossas atuais gerações a um futuro sem perspectivas. Em grande medida, graças à indigência intelectual desta casta de, agora autopromovidos, Marechais.

Yes, nós temos bananas.

BANANA MAMATA

Um famoso filme de animação tornou popular a expressão Hakuna Matata, retirada do idioma suaíli, que é comum na Tanzânia e o Quênia. A tradução encontra paralelos em outras expressões idiomáticas populares como o “no problemou o don’t worryanglo-saxão. Ou seja, uma recomendação para não se preocupar com pequenos problemas, não se aborrecer com as críticas, não esquentar a cabeça com cobranças públicas por seus atos. Pra usar uma expressão mais atual, trata-se do “ligar o foda-se”.

Os militares que se articularam para voltar ao poder com a candidatura do Bolsonaro estavam com esta postura tranquila até bem recentemente. Afinal, sempre foram protegidos pelo véu da impunidade. Mas bastou uma tímida insinuação de que eles poderiam ter esta posição de conforto ameaçada para que, indignados, subissem em seus coturnos, Isto ficou muito evidente na nota completamente estapafúrdia e desproporcional dos comandantes militares diante da manifestação do Senador que preside a CPI da Covid19, numa reação que beirou a histeria. Ele apenas manifestou publicamente a constatação do claro envolvimento de militares com a corrupção criminosa para a compra de vacinas.

Desta forma eles mandaram a “hakuna matata” às favas, tal como fizeram com os escrúpulos ao editar o AI-5 em 1968. A “banana mamataparece estar acima de tudo, acima de todos. Até um general, hoje na reserva, tido como íntegro e sensato, veio a público dizer que não existe “banda podre” nas forças armadas. Declaração que não chega a ser surpreendente, pois o mesmo foi fiador deste governo até ser defenestrado dele de forma humilhante.

Isto acontece porque os militares brasileiros, desde sempre, se julgam como uma elite, um grupo à parte entre os cidadãos, uma reserva moral da sociedade brasileira, sempre prontos a sacrificar a própria vida na defesa da nação. De tanto repetirem esta baboseira nas academias, acreditam nela como num dogma.

Verdade que a vida militar pode ser dura, impondo dificuldades à vida pessoal e familiar de seus integrantes. Mas é uma escolha de cada um, não um sacrifício imposto à revelia, que justifique ou minimize a gravidade de qualquer deslize que venha da caserna. A opção pela carreira militar não torna nenhum cidadão superior aos outros. As FFAA não são instituições transcendentes, com se algum manto divino as protegessem das fraquezas e vilezas que afligem qualquer outra instituição pública.

Portanto, reina na caserna um profundo falso moralismo. Pois estes profissionais, que se julgam tão competentes, honestos e dedicados a nação, de forma direta ou indireta foram cúmplices descarados do negacionismo que fez milhares de vítimas.

Muitos tentam explicar o fenômeno dizendo que os militares fingem que nada acontece para obter mais benesses enquanto ocupam milhares de cargos. Alguns até mesmo se locupletando com vencimentos acima do teto constitucional. Mas a explicação não é tão simples, ainda que haja muito de verdade neste argumento.

O buraco é mais embaixo. O negacionismo sempre fez parte do pensamento da caserna, habituado a negar tudo que contraria os dogmas da instituição, mesmo tendo de recorrer a contorcionismo argumentativos (como na defesa dos agentes de estado que praticaram torturas). E um dos dogmas mais arraigados é o que diz que a corrupção não grassava nos seus governos pós 1964.

Talvez ao contrário do que esperavam, a nota desastrada dos comandantes militares acabou tendo o efeito de quem sacode um vespeiro. Logo o TCU tornou público a grande quantidade de processo de irregulares nas licitações das FFAA. Nada muito diferente do que acontece em outros órgãos públicos. Todos tem as suas bandas podres sim, e se escudar no negacionismo e na garantia de impunidade não ajuda em nada. Muito pelo contrário, até incentiva ousadas práticas criminosas, como foi o caso de tráfico de drogas no avião da comitiva presidencial. Fato este que reforçou na Europa a percepção de que continuamos a ser uma grande república bananeira.

Porém o tapa de luva na nota dos comandantes militares veio dos diplomatas recém-formados, que escolheram homenagear um de seus quadros, o Embaixador José Jobim, assassinado quando pretendia tornar pública a corrupção na Itaipu Binacional, em pleno regime militar. E esta foi apenas a ponta mais saliente do iceberg da corrupção do regime pós-64, nos quais se fartaram os malufs da vida e outros mais. Com a imposição de uma violenta censura à imprensa, a ditadura selou com civis e militares corruptos um pacto não declarado de impunidade, e só muito recentemente os historiadores começaram a trazer à luz os casos escandalosos daquela época.

Foi muita a sujeira jogada pra baixo do tapete, com a desculpa esfarrapada de que as denúncias eram táticas subversivas dos comunistas. Nem mesmo apelaram para a clássica desculpa de que roupa suja se lava em casa (ou melhor, na caserna). Sobrou muita farda emporcalhada que nunca foi lavada.

A corrupção no Brasil, como muitos já assinalaram, é sistêmica e endêmica. Nenhum instituição está livre dela. Porém generais moralistas insistem em negar este fato. Parafraseando o velho dito popular, agora podemos dizer: Os generais estão nus. Só eles não enxergam isso.

Bananas Cinematográficas

Em 1983, o cineasta independente norte-americano Robert Altman dirigiu o filme“ Streamers”, adaptado do texto teatral de David Rabe, que no Brasil teve como título “O pequeno exército inútil”. A ação se passa toda dentro de um galpão, onde quatro recrutas e dois sargentos aguardam o embarque para o Vietnam. Durante esta espera emergem questões raciais e homossexuais entre os militares, com desfecho trágico. Os críticos viram no filme uma reflexão sobre os conflitos sociais presentes na sociedade norteamericana.

Que me perdoem os militares brasileiros honrados e conscientes de seu papel social (eles existem, acreditem!) mas se um cineasta resolvesse fazer o mesmo hoje no Brasil, uma crítica aos conflitos políticos e sociais da nossa república bananeira ambientada na caserna, o título poderia ser parafraseado: “O imenso exército inútil”.

Calma lá! Antes que joguem pedras, não se trata de ignorar aqui o importante serviço de interesse social que o exército brasileiro faz nos rincões do país. Não é pouca coisa, sejamos justos. Ademais, eles tem a missão hercúlea de vigiar as nossas imensas fronteiras, com pouco recursos e equipamentos obsoletos em boa parte das vezes. O que nos salva é que não sofremos ameaças de agressões externas de parte de outras nações.

Mas foi exatamente a ausência deste risco, de agressões por nações estrangeiras que queiram violar a nossa soberania, que deixou as nossas FFAA carentes de uma justificativa mais robusta e menos retórica para a sua existência em tempos de paz. Não é de se admirar que tenham sido facilmente cooptadas pela lógica da guerra fria: aderiram ao combate ao “comunismo”, traduzida na forma de um inimigo interno, já que os possíveis inimigos reais estariam a milhares de quilômetros de distância. A guerra fria acabou, mas esta visão anacrônica está até hoje entranhada nos documentos e doutrinas das instituições formadoras dos militares. Uma mentalidade que as impedem de adequarem os seus propósitos ao mundo multipolar que se desenha.

Se as nossas elites econômicas tivessem sido capazes de formular um projeto de desenvolvimento nacional e soberano, caberia as FFAA a missão de contribuir para assegurar a sua realização. Como isto nunca aconteceu, restou aos “pensadores” militares, além do viralatismo na relação com os EUA, abraçarem teses bizarras. Assim, a amazônia, nossa fronteira mais frágil e desguarnecida, virou o grande cavalo de batalha. O fantasma da “internacionalização” foi moldado de forma bem funcional ao pensamento predatório das nossas “pops” elites agrárias.  A ocupação irracional – antes nossa do que deles –  passou a ser tolerada. Assim a boiada foi passando: estrangeiros comprando cada vez mais fatias do nosso território, biopirataria comendo solta, prospecções geológicas disfarçadas de missão religiosa. Mas os doutrinadores militares difundiam  teses paranoicas: desde o risco de territórios de “nações” indígenas declararem a independência (estimuladas por ONGs ambientalistas) até, mais recentemente, o perigo de sofrermos uma invasão da França num futuro próximo a partir da Guiana.

Dizem que nos círculos militares da OTAN as gargalhadas abundaram quando tomaram conhecimento deste delírio, supostamente parte da Estratégia de Defesa Nacional. Diante do vexame anunciado, rapidamente algumas autoridades militares se pronunciaram negando o caráter oficial desta tese, informando que se tratava apenas de exercício de construção de cenários. Mas o estrago já estava feito.

O anticomunismo da guerra fria foi reavivado com o “suporte teórico” de uma mente visivelmente desequilibrada (Olavo de Carvalho) que elegeu o Foro de São Paulo como ameaça à nossa soberania. (Sugestão de reflexão: o que diria o Golbery do Couto e Silva do astrólogo da Virgínia?)

Isto acontece porque a caserna é uma “bolha”. Sem supervisão civil, sofre de autismo institucional. Talvez o melhor retrato do anacronismo destas instituições seja o concurso para o hino do Ministério da Defesa, realizado em pleno século XXI. A canção vencedora, em 2010, parece ter saído de algum baú de partituras do século XIX. (https://www.gov.br/defesa/pt-br/acesso-a-informacao/institucional-2/o-que-e-o-ministerio-da-defesa-1/hino-do-ministerio-da-defesa).

Desde a proclamação da República que as instituições militares incorporaram a ideia de que devem tutelar a vida civil. Essa concepção os colocou como uma presa fácil para servir a interesses geopolíticos externos e favorecer elites econômicas e corruptas que nunca tiveram um projeto de nação. Em alguns poucos momentos da nossa história até existiram militares que tinham uma visão da necessidade de um desenvolvimento nacional soberano. Um general chegou até a ser chamado de “gênio da raça” pelo cineasta mais brilhante que já tivemos (Gláuber Rocha, que foi massacrado por críticas após essa afirmação). Sem estes militares não teríamos desenvolvido a tecnologia nuclear e aeroespacial, por exemplo, coisa que o nosso “irmão do norte” nunca gostou (para dizer o mínimo).

Mas hoje nossos generais da ativa, numa amostra de profunda indigência intelectual, compactuam com a entrega de ativos econômicos estratégicos do país para o controle do “mercado”, submissos ao neoliberalismo mais vulgar. A suposta defesa da amazônia acaba por servir ao propósito de transformá-la numa grande Serra do Navio (1). O nacionalismo dos militares virou uma peça retórica, diluída num patriotismo tão exaltado quanto vazio. Igual ao anacrônico hino do Ministério da Defesa. Tudo isto nos brindou com um imenso exército sem causa. E um exército sem causa é um exército inútil. E perigoso, muito perigoso para os cidadãos brasileiros.

A situação das FFAA brasileiras na atualidade é um filme que já conhecemos o final. Já passou a hora de trocar os diretores e roteiristas deste filme, por outros que nos livrem deste desta desagradável condição de maior república bananeira do mundo.

(1) Sobre a exploração predatória da Serra do Navio: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/ap-apos-esgotamento-do-manganes-passivos-ambientais-e-perspectiva-economica-incerta-rondam-as-cidades-de-serra-do-navio-e-santana/

Quartelada 4.0 – “Bananadas again”

Desde a derrubada do presidente paraguaio Fernando Lugo, debate-se que a América Latina passou a ser vítima de um novo tipo de golpe, diferente das quarteladas do passado, que derrubavam os governos e sufocavam as democracias com tanques e tropas nas ruas.

Esse modelo de tomada do poder sempre foi característico das repúblicas das bananas latino-americanas. Quando não funcionava, havia sempre a mão amiga do Tio Sam, a intervenção militar dos EUA para resolver a questão.

O mundo civilizado sepultou este tipo de golpe. Foram tantos os crimes e abusos dos militares que esta tática foi abandonada. A pá de cal foi a queda da URSS, pondo fim à guerra fria que justificava o apoio externo aos golpes militares bananeiros.

A prisão na Europa do facínora Augusto Pinochet pôs um fim a esta via golpista.

A participação dos EUA na defesa de seus interesses geopolíticos passou a ser mais discreta. Ao invés de mandar seus fuzileiros, passou a financiar o treinamento das autoridade policiais e judiciárias para o uso da lawfare.

Desta forma, a articulação dos poderes legislativo, judiciário, militar e da mídia, com o uso da lawfare, passou a ser a nova forma de tirar do poder governos que desagradaram aos interesses geopolíticos do Império. Foi assim no Paraguai, Honduras, Brasil, Equador, Peru e Bolívia. Este último foi um didático ponto fora da curva: ficou demonstrado que a via golpista com protagonismo militar e interferência externa aberta – como foi a deplorável postura da OEA – não se sustenta por muito tempo.

Mas em nenhum lugar vimos algo parecido com o que aconteceu no Brasil. Algo que só foi possível por conta da impunidade dos agentes de estado que, quando no exercício do poder, cometeram crimes contra a humanidade.

O retorno dos militares, usando Bolsonaro como cavalo de troia, foi tramado com certa discrição. Mas, ao tomarem posse, deixaram de lado todos os pudores. A ocupação de cargos públicos se deu numa dimensão pornográfica. Nem a ditadura implantada em 1964 ousou tanto.

Arrogantes, achando-se moralmente superiores, arvoraram-se para ocupar funções para as quais nunca tiveram competência. O exemplo mais patéticoe trágico – foi a nomeação de um general “especialista em logística” para ser Ministro da Saúde. Num surto de sincericídio, que só a cegueira dos arrogantes permite, o general confessou que sequer sabia o que era o SUS – o vigoroso eixo sobre o qual se articula a política nacional de saúde. E isso no momento da maior crise sanitária da história do país.

O fiasco foi além de qualquer expectativa pessimista. A suposta eficiência logística ruiu com a troca primária na remessa de vacinas para os Estados e na incompetência para lidar com a crise da falta de oxigênio hospitalar. E ainda tiveram a humilhação de ver o vizinho execrado – a Venezuela – ser mais diligente no envio de um auxílio voluntário. E a tão propalada superioridade moral dos militares foi ridicularizada com o escândalo da corrupção das vacinas. Aliás, aqui testemunhamos o quão grave é a situação da nossa gigantesca república das bananas: os comandantes militares divulgaram nota indignada condenando o intuito de punir seus colegas fardados. Impunidade para os militares, acima de tudo e de todos.

Um dos principais cientistas políticos do mundo no século XX, ainda hoje referencia obrigatória neste domínio, foi o norteamericano Robert Dahl. Ele concebeu a democracia não como um sistema idealizado, mas como um arranjo político possível, realista, com várias gradações conforme a situação particular de cada país. Ele a chamou de Poliarquia, num livro que rapidamente se tornou um clássico.

Neste livro o autor é claro ao dizer que não é possível que se desenvolva uma democracia, ou uma Poliarquia, se os militares não forem contidos, se não estiverem submetidos ao poder civil. Traduzido para a realidade brasileira, este ensinamento explica a razão e a dimensão da nossa tragédia. As escolas militares, em suas doutrinas, defendem historicamente a tutela militar sobre o poder civil. Ou seja, enquanto isto não for alterado, estaremos condenados a ser uma gigantesca República das bananas. Pior: com agentes fardados livres para cometer crimes sob o manto da impunidade. Nenhum militar na Alemanha ousaria saudar Joseph Menghele. No Brasil, permitem que façam homenagens ao notório torturador Brilhante Ustra. É assim que as nossas FFAA contribuem para sermos a maior república das bananas do mundo.

José do Brasil

© 2021 É livre a reprodução total ou parcial

Bananas Assassinas

Muito já se escreveu sobre os crimes contra a humanidade cometidos pelos militares brasileiros após a quartelada de 1964. Quando uma nova conjuntura internacional os forçou a devolver o poder aos civis, exigiram que o manto da impunidade fosse lançado sobre todos aqueles crimes, que eles consideravam “crimes de gerra”. E a simples instalação de uma tímida Comissão da Verdade muito tempo depois, mesmo sem qualquer viés punitivista, serviu de estopim para um movimento de retomada do poder pelos militares. Para eles, o preço da liberdade (de cometer abusos) é a certeza da eterna impunidade.

Como o tempo não volta atrás, para interromper o ciclo da impunidade dos agentes do Estado é necessário centrar esforços na responsabilização de atos recentes. Se as FFAA não são mais agentes diretos de crimes contra a humanidade, ao menos por enquanto, isto não as impedem de serem cúmplices de outras barbáries cotidianas que permanecem impunes.

Os holofotes estão agora voltados para a tentativa de acobertar a gestão incompetente, criminosa e corrupta dos militares no Ministério da Saúde durante a pandemia de Covid-19. Porém, o caso mais sórdido de “operação abafa” dos militares brasileiros parece ter relação com a execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista.

O crime se deu durante a intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro. Muitos fazem a ilação de que, ao menos em parte, o crime foi uma reação à própria intervenção militar. Logo, confrontados de forma tão ignóbil, esperava-se dos militares uma reação mais dura, uma resposta rápida e eficaz. Com o total comando da segurança pública nas mãos, eles tinham o acesso a todos os bancos de dados e relatórios de inteligência das polícias civil e militar, além de seus próprios serviços de inteligência. Mas pouco fizeram. Preocupados talvez com o impacto das investigações no projeto de retorno ao poder pela via eleitoral, parece que optaram pela “vista grossa”, mesmo diante de um crime que teve repercussão internacional.

Quem sabe como uma investigação policial funciona, sabe também que muitas vezes chega-se aos mandantes do crime com relativa rapidez. Existe uma rede de informantes e de investigadores competentes sempre em ação. Mas nada é divulgado até que se tenha em mãos evidências irrefutáveis ou provas sólidas. E isto nem sempre é fácil. Por isso, quando um miliciano não quer ser incriminado, ele investe pesado numa “operação abafa”: executa possíveis denunciantes (queima de arquivo), corre para apagar rastros e destrói evidências materiais. E usa para isso todos os seus quadros infiltrados na máquina do estado, os agentes públicos corrompidos para sabotar as investigações.

No caso Marielle Franco foi isso que se viu, e ainda se vê, durante toda a investigação que se arrasta por mais de três anos.

O mais intrigante durante todo este processo, que pode ser visto na série documental produzida sobre o episódio, é a tentativa dos chefões da milícia de incriminarem uns aos outros. Que todos se digam inocentes, não é surpresa. Mas a tentativa de acusarem-se mutuamente, sugere a intenção de sacrificar um “boi de piranha”, para “solucionar” de uma vez o crime e deixá-los seguir com os seus negócios em paz. Escolhe-se alguém para “pagar o pato” e a vida segue.

Ou seja, tudo isso parece indicar que não foram os chefões da milícia carioca que conceberam o crime; talvez eles tenham tão somente oferecido a estrutura criminosa que possuem para operacionalizar a ação. E certamente o fizeram em troca de algum beneficio. Convenhamos que a alegada motivação de vingança pela ação do parlamentar Marcelo Freixo não justifica um crime tão sofisticado, ainda que seja um fator a ser considerado.

O crime ocorreu nas barbas dos chefes militares que comandavam a segurança pública na ocasião, hoje comodamente instalados no centro do poder político. Não é segredo para ninguém que o clã que ocupa a “casa de vidro” tem relações quase carnais com os criminosos da milícia carioca. E parece não haver dúvidas de que os que vestem uniformes verde-oliva tem total conhecimento destes fatos.

Nos últimos dias, o delegado responsável pelo caso Marielle foi substituído pela quarta vez, enquanto que as procuradoras que investigavam o caso pediram pra sair, denunciando constantes interferências e a frequente criação de obstáculos ao trabalho delas.

Assim, a operação abafa prossegue, descaradamente, a pleno vapor. Para proteger quem ou a quais interesses, não se sabe. Mas com todos os dados já divulgados, não dá para descartar a suspeita de que tem respingos de sangue nas fardas de alguns “patriotas”. Só que, na maior República das Bananas do mundo, isto não lhes causa vergonha.

Enquanto os mandantes deste crime hediondo não forem revelados e punidos jamais seremos um país merecedor de respeito do mundo civilizado.

José do Brasil

(C)2021.É livre a reprodução parcial ou integral.

Sobre bananas e bandeiras

As chamadas “repúblicas bananeiras” caracterizam-se, entre outras coisas, pela promoção do ufanismo, do nacionalismo extremo, pelo culto exacerbado aos símbolos nacionais, com destaque para o hino e a bandeira. Não é uma exclusividade destas repúblicas, nem o que as define enquanto bananeiras, mas é algo que sempre está presente nestes governos.

É também uma tática que encontramos em todos os fascismos nacionais ao longo da história. Neofascistas, racistas, xenófobos e neonazistas sempre agem da mesma maneira. Quem não exibe e exalta com o mesmo furor os símbolos nacionais é acusado de não ser patriota. Desta forma, toda a oposição democrata é tachada de impatriótica e as suas críticas são desqualificadas.

E esta tática tem funcionado em vários países pelo mundo. Nenhum humanista, nenhum democrata quer ser confundido com a barbárie difundida pela extrema-direita. E por esta razão muitos deixam de usar os símbolos nacionais, que acabam apropriados de forma quase exclusiva pelo que existe de mais deplorável no espectro político.

Muito se debate sobre a necessidade de recuperar estes símbolos que foram sequestrados e monopolizados pela extrema-direita. Porém, pelo que vemos nas manifestações de rua que buscam se diferenciar destes grupos, muita gente ainda demonstra uma grande resistência em portar a bandeira nacional. Alguns até se sentem desconfortáveis em vestir trajes com as cores nacionais.

Portanto, recuperar o significado dos símbolos nacionais pela ótica democrática é uma disputa que não é nada simples. Não basta ostentar publicamente estes símbolos para se contrapor ao sequestro dos mesmos pela extrema-direita. É preciso ressignificá-los. Um famoso “youtuber” e “inflluencer” percebeu isso no ano passado e lançou a ideia. Como fazer isso é a questão que se coloca.

A história da bandeira brasileira é bem curiosa a este respeito. O verde e amarelo, tão celebrado, tem origem monarquista. Foi encomendada ao artista francês Jean-Baptiste Debret por D. João VI para ser o pavilhão da realeza do Vice-Reino. Ainda que D. Pedro I tenha dito em certa feita que aquelas cores simbolizavam “a riqueza e a primavera eterna do Brasil”, a inspiração era bem outra. A cor verde era referência a casa real de Bragança e a amarela à casa de Habsburg-Lorena, da realeza austríaca. Respectivamente, as origens reais do imperador e da princesa Leopoldina. Não por outra razão, a bandeira encomenda por D. João VI pouco se difere da bandeira adotada pelo Brasil “independente”. Após a proclamação da república, entre as muitas propostas apresentadas, adotou-se o mesmo padrão visual, apenas redesenhando alguns dos elementos utilizados. Foram retirados os ramos e café e tabaco, a coroa imperial e o globo armilar com a cruz da Ordem de Cristo. Nos seus lugares  foram colocados um círculo azul com o Cruzeiro do sul e o lema positivista. As estrelas que simbolizavam as províncias viraram constelações representando as novas unidades federativas.

A bandeira, portanto, espelha perfeitamente a natureza das transformações politicas que o país sofreu, ou melhor, não sofreu. Foram mudanças negociadas pelas elites dominantes, sem qualquer participação popular. A independência foi obra da própria realeza. O mesmo príncipe que declarou a independência e se autoproclamou imperador, pouco depois voltou para Portugal e assumiu o trono real. Da mesma forma, a proclamação da república e o fim da monarquia foi fruto de um golpe dado por militares… monarquistas! Não causa espanto que a bandeira reflita em suas cores e formas esta peculiaridade. A ordem social do país pouco ou nada mudou nestes celebrados eventos históricos. Compreensível que a bandeira represente este fato.

Se a independência e a república tivessem sido fruto de rebeliões populares, a atual bandeira seria inconcebível. Talvez sobrevivesse tal como  a bandeira dos estados confederados norte-americanos, associada às elites agrárias, ao escravagismo, ao genocídio indígena, ao racismo, à extrema-direita.

Nos primeiros anos da república até que surgiram outras propostas para o pavilhão nacional. Alguns pretendiam imitar o padrão da bandeira dos EUA, com listras verdes e amarelas, que acabou adotada por alguns estados brasileiros (Goiás, Piauí e Sergipe). Mas também houve quem sugerisse as cores vermelha, branca e preta, em alusão as três etnias formadoras da nação (sugestões de Silva Jardim e do Barão do Rio Branco). O Marechal Floriano Peixoto, nos primeiros dias da república, teria ordenado que se aproveitasse inteiramente a bandeira da monarquia, apenas substituindo a coroa real por uma estrela vermelha, que era símbolo dos republicanos. Imaginem se essa ideia tivesse vingado, como alguns dos chauvinistas de hoje estariam se comportando em relação à bandeira nacional…

Ao que tudo indica, a nova bandeira da república não despertou maiores fulgores patrióticos na população. Além de pouco se diferenciar das bandeiras anteriores, o povo sempre foi mantido fora do processo politico. Conforme a clássica frase atribuída ao escritor Lima Barreto (“O Brasil não tem povo, tem público”), a população era uma mera espectadora das mudanças politicas.

Assim também foi com a Revolução de 30, que eternizou a famosa frase do governador de Minas Gerais à época (Antônio Carlos de Andrada): “façamos a revolução antes que o povo as faça”. O povo a que ele se referia era a classe trabalhadora que desde 1918 promovia greves gerais e intensas lutas socias. Os “revolucionários” apenas incorporaram as demandas da pequena e media burguesia que ascendia.  O rearranjo do poder entre as classes dominantes dipensou qualquer alteração na bandeira nacional.

O culto a bandeira se difundiu somente com o projeto politico do “Estado Novo”, que colocou em ação uma forte máquina de propaganda para a construção de um ideal de nacionalidade, uma identidade comum para o povo brasileiro, mantendo o povo trabalhador devidamente tutelado.

Ironicamente, essa identidade de povo, de sermos todos uma só nação, só foi mesmo plenamente alcançada com a difusão de um esporte que Lima Barreto abominava, por considerá-lo alienante: o futebol. Nos transformamos no país do futebol ou, no dizer de Nélson Rodrigues, a seleção brasileira se tornou a nossa pátria de chuteiras. Isso talvez explique o estranho paradoxo de como a camisa amarela, de uma entidade historicamente corrupta como a CBF, tenha se tornado uma espécie de uniforme das manifestações contra a corrupção.

Nessa batalha pelas bandeiras e símbolos nacionais há um outro estratagema que tem sido utilizado para estigmatizar os que se opõem aos desvarios da extrema-direita. Trata-se da difusão da palavra de ordem “nossa bandeira jamais será vermelha”. A intenção óbvia é a referência ao sempre execrado “comunismo”, e também pelo fato do vermelho ser a cor predominante nos símbolos dos partidos à esquerda do espectro político. É uma tática que faz parte da mesma estratégia, de acusar os que portam bandeiras vermelhas de não serem patriotas. Não importa o fato de que não existe ninguém propondo substituir a bandeira nacional por uma bandeira vermelha. Citando novamente o Nélson Rodrigues, ele dizia que o time pelo qual torcia apaixonadamente – o Fluminense – era o melhor do mundo. Para justificar, escreveu a máxima: se os fatos não confirmam esta verdade, pior para os fatos. O velho jornalista e dramaturgo já entendia muito bem a lógica das fake-news, expressão que ele nem chegou a conhecer.

O curioso nisso tudo é que não seria nenhum absurdo se a cor vermelha fizesse parte do pavilhão nacional. Afinal, o nome do país se deve a uma árvore que era abundante no litoral na época colonial, até que fosse praticamente extinta pela exploração irracional: o pau-brasil, cuja resina vermelha intensa era um corante altamente valorizado na europa. Brasil, inclusive, é uma palavra cuja etimologia remete à cor vermelha. Surpreende que esta cor não faça parte da bandeira nacional.

Além da já citada estrela vermelha sugerida pelo Marechal Floriano, o vermelho está na bandeira de uma das mais celebradas tentativas de independência nacional, a Inconfidência mineira, que foi adotada pelo Estado de Minas Gerais. Segundo historiadores, a cor do triângulo foi escolhida por associar-se a rupturas revolucionárias. E isto numa época em que Karl Marx nem tinha nascido.

A bandeira brasileira, nosso maior símbolo pátrio, deve ser sim, urgentemente, ressignificada. E isto não será alcançado apenas usando-a da mesma forma que a extrema-direita o faz. Ela tem que estar associada a outros valores civilizatórios.

Um exemplo de como isto é possível, e de forma incrivelmente original, encontra-se numa expressão da nossa cultura popular. A mais famosa escola de samba do país, a Estação Primeira de Mangueira, criou no desfile de 2019 uma versão própria do símbolo nacional. Aproveitou as mesmas formas e substituiu as cores originais pelas cores da agremiação (verde, rosa e branco). E no lugar do lema positivista, incluiu os principais agentes da construção do país (negros, índios e pobres) cuja representação sempre esteve ausente no pavilhão nacional. O enredo “Histórias que a história não conta”, propôs uma releitura da história do Brasil, ressignificando-a partir da perspectivas das classes populares.

Muito melhor que a camisa da CBF, convenhamos.

Enfim, muita coisa original pode ser criada, inclusive preservando as formas e cores utilizadas. A forma de losango era usada para ilustrar as “armas das damas”, um padrão usado para brasões e escudos femininos. Por isso a cor amarela da casa real de Habsburg, da imperatriz Leopoldina, preenche o losango da bandeira do Império. Para enfrentar uma extrema direita patriarcal, machista e misógina, eis aí um elemento que pode recuperado e ressignificado.

Outras combinações de cores também são possíveis. Como aquelas associadas ao pan-africanismo (verde/amarelo/vermelho), presente na maioria das bandeiras do continente africano. Ou ainda preto/vermelho/verde, da AUPN*. Afinal, somos o país de maior população afrodescente fora do continente africano

As possibilidades, portanto, são muitas. Cabe aos movimentos democráticos encontrarem formas criativas de utilizá-las.

José do Brasil
(C) 2021 É livre a reprodução parcial ou total.

*Associação Universal para o Progresso Negro ou UNIA (Universal Negro Improvement Association and African Communities League),organização internacional fundada pelo ativista Marcus Garvey.

PS: Na Wikipédia há a reprodução das várias versões da bandeira brasileira citadas (https://pt.wikipedia.org/wiki/Evolu%C3%A7%C3%A3o_da_bandeira_do_Brasil), exceto a chamada “bandeira militar” proposta pelo Marechal Floriano Peixoto,com a cruz vermelha simbolizando a república no lugar da coroa imperial.