Bananas Traiçoeiras (a arte da dissimulação militar)

Há décadas – desde a campanha da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Itália – que o Brasil não combate em guerras. Apenas esteve em missões de paz ONU e atuou de forma vergonhosa e subserviente na invasão da República Dominicana pelos EUA em 1965. Sem participar de combates efetivos, os atuais comandantes militares brasileiros só conhecem a guerra pelos livros. São estudiosos de estratégias e táticas militares, mas que nunca as colocaram em prática num campo de batalha.

Na falta de um inimigo externo real, praticam os seus conhecimentos contra o que eles chamam de “inimigo interno”. Na verdade, apenas uma desculpa esfarrapada para assegurar a permanência deles no poder e para a garantia de privilégios corporativos negados à maioria da população civil. Este é o verdadeiro objetivo estratégico da “guerra” que eles travam no Brasil, travestidos com uma anacrônica retórica de combate ao comunismo.

Entre as táticas utilizadas, está a dissimulação. Ocultar suas reais intenções para induzir os seus adversários a subestimá-los e incorrer em erros.

Neste mês de julho foram disseminadas (melhor dizer “plantadas”) na imprensa várias notícias com esta finalidade de distração. E esta indução ao erro parece estar surtindo efeito. Lamentavelmente.

Primeiramente, o Ministro da Defesa manifestou-se de forma patética, duvidando da confiabilidade das urnas eletrônicas. A análise superficial diz que foi apenas um reflexo da ambição prosaica das FFAA de tutelar o processo eleitoral, algo inédito na história.  Na verdade, a intenção era muito mais a de desacreditar o STF e TSE perante o fanático eleitorado bolsonarista.

Provocada esta cizânia, vieram outros atos coordenados (que nada têm de aleatórios ou impensados)

– Comandantes militares não vão a encontro com os Embaixadores convocado pelo Presidente que atacou as urnas eletrônicas. Para os analistas de plantão, seria um sinal de que não há da parte deles concordância com o ataque à lisura do processo eleitoral;

– Circula uma notícia de que os militares estariam negociando com o Lula a manutenção do orçamento de suas pastas e as condições privilegiadas da aposentadoria militar. A imprensa viu nisto o avanço na corporação militar de uma aceitação da vitória do Lula;

– Segue-se uma nota conjunta dos comandantes militares em que refutam a existência de divisões internas e reafirmam um respeito, meramente retórico, às regras democráticas;

– É emitida nota da Embaixada dos EUA reafirmando a confiança no processo eleitoral brasileiro. Para a grande imprensa seria um recado aos militares de que o Tio Sam não apoiará um golpe militar;

– São publicadas notas de associações da Polícia Federal e da ABIN afirmando a sua confiança nas urnas eletrônicas;

– Banqueiros e empresários assinam um manifesto pela democracia. Por outro lado, circulam notícias de que setores do agronegócio se aproximam de Lula;

– O Ministro da Defesa comunica que irá assinar uma carta compromisso da OEA de respeito à democracia.

Finalmente, a voz e o pensamento da elite brasileira – os editoriais dos jornalões – passaram a condenar com mais veemência os arroubos golpistas do Presidente. Tudo em consonância com as análises de seus “especialistas”, que afirmam que não existem condições para um golpe. Argumentam que as FFAA não vão entrar numa aventura, que o capital financeiro e industrial também não, o agronegócio estaria se movimentando na mesma direção, uma condenação internacional é tida como certa (leia-se EUA) e as instituições seguirão firmes na defesa do sistema eleitoral (STF e TSE).

Quem não te conhece é que te compra, diz o ditado.

De uma hora para outra, todos os apoiadores que até dias atrás riam e urravam diante das bravatas do Presidente em eventos públicos (dos Faria Limers, do Agronegócio, da FIRJAN, das Associações Comerciais e outros mais), parecem ter mudado de opinião.

Não vamos nos debruçar sobre o oportunismo e hipocrisia da grande imprensa e destes atores políticos “recém-convertidos” (“-Acredite, se quiser”, diria Jack Palance). São apenas as classes frustradas com a “terceira via” que não vingou. E as críticas que fazem ao Presidente são até leves, se comparadas ao massacre midiático que dirigiram à Lula e à Dilma num passado recente. No fundo, eles queriam um Presidente com uma agenda neoliberal igual a do governo atual, mas que respeitasse um mínimo de regras de etiqueta e soubesse comer de garfo e faca.

Bolsonaro se tornou disfuncional. Foi útil para o trabalho de desmonte da seguridade social e trabalhista, da liberação da grilagem e da mineração, do desmonte da regulação estatal. Mas agora ele se tornou um péssimo cartão de visitas para os negócios da elite econômica.

O que vale a pena considerar mais seriamente é aquele personagem que sempre é o fiel da balança numa república bananeira: as Forças Armadas (sempre é bom lembrar que somos a maior República das Bananas do planeta, como já foi dito aqui).

Não é de hoje que o atual presidente expressa claramente as suas intenções golpistas e sugere que terá o apoio das FFAA, das quais é o “comandante supremo”. Para garantir esta fidelidade, ele teria trocado todo o comando militar no ano passado, algo que nunca ocorreu na história da República.

Não há razão para ilusões. Os atuais comandantes militares são bolsonaristas até o último fio de cabelo. Basta ler as diversas manifestações públicas deles, tanto na imprensa quanto nas redes sociais. São limitados cultural e intelectualmente, mas não são burros. Existe sim uma inteligência militar. Não devemos subestimá-los. Sabem muito bem o que fazem. [i]

Se o assunto é política, a palavra dos militares não tem qualquer credibilidade.  E quando reafirmam o compromisso com a legalidade, não tem como deixar de ver nisto um tanto de cinismo e deboche.

Vamos recordar alguns fatos históricos. O primeiro golpe militar do Brasil – a Proclamação da República – foi liderada por marechais monarquistas, que traíram o Imperador. Queriam mais poder para os militares na máquina do Estado.

No livro de memórias de Almino Afonso, sobre o golpe de 1964, o autor reproduz um diálogo de Jango com seus chefes militares. Eles lhe informaram que estava tudo normal, que o risco de sublevação não existia. O chefe da Casa Militar, General Assis Brasil, era um legalista que não tinha acesso aos planos golpistas e foi traído pelos colegas de farda. O mesmo que aconteceria do Chile de Salvador Allende, cujo general legalista Carlos Prats – depois assassinado – acreditava que Pinochet era confiável. Os exemplos são muitos para quem quiser se debruçar sobre este tema.

Os golpistas militares agem nas sombras e dissimulam permanentemente suas intenções.

Os militares sabem que, no mundo de hoje, não há mais espaço para um golpe militar clássico, as típicas quarteladas que infestaram a América Latina nos anos 60/70 do século passado. Para este tipo de golpe, não há qualquer chance de obter apoio dos EUA e das maiores democracias ocidentais.

Também sabem que a continuidade de Bolsonaro é inviável. Ele já cumpriu o papel que lhe cabia e pode ser descartado. Cavalo de Tróia das FFAA, ganhará a impunidade por gratidão pelos serviços prestados. A mesma impunidade que foi dada ao Brigadeiro Burnier, ao Coronel Ustra, para centenas de torturadores e aos terroristas militares do atentado ao Riocentro.

Vamos ao X da questão: O golpe planejado não é para manter Bolsonaro no poder, mas para impedir um novo governo do Lula.

Os militares sabem que teriam o apoio entusiasmado da elite econômica para isso. E, em tese, até mesmo dos EUA. O Partido Democrata repudia a sabujice de Bolsonaro ao Donald Trump, é certo.  Mas também não gosta da ideia de ver um líder com o carisma de Lula de volta ao cenário internacional. Um presidente que fortaleça a soberania nacional e o BRICS, num momento em que a unipolaridade norte-americana está ruindo, é algo que deixa o Tio Sam de cabelo em pé.

Aí vocês podem se perguntar: Como fariam isso sem recorrer a uma clássica quartelada? Ora, em tempos de guerras híbridas, são muitas as alternativas. Articulistas na web já fizeram várias especulações: da cassação do registro do Bolsonaro para dar lugar a uma terceira via até o assassinato do Lula. De todas as teses que circulam, a mais plausível é a que diz que os militares deixarão de forma proposital que Bolsonaro estimule a insurreição de seus seguidores fanáticos e armados. Diante do caos, a s FFAA se apresentariam como garantidoras da Lei e da Ordem.  [ii]

Faz todo sentido. Nos últimos anos assistimos a livre disseminação de armamentos pesados e munição entre a população civil. Foram eliminados inclusive formas de rastreio do uso de munições, além de um relaxamento nas licenças que permitiu até que pessoas com ficha criminal tivessem acesso a estas armas.  Em pouco tempo, os CACs – clubes de colecionadores de armas, atiradores profissionais e caçadores – se multiplicaram e adquiriram um poder de fogo inimaginável. E isto não se deu por irresponsabilidade, incompetência ou negligência das FFAA: era este mesmo o plano. [iii]

No momento em que este artigo está sendo escrito, realiza-se em Brasília a 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas. Uma insólita coincidência.  Na abertura, o ministro da Defesa do Brasil, bolsonarista roxo, anunciou que ao final do encontro será assinada uma declaração em que será reafirmado o compromisso com a “Carta Democrática Interamericana, e seus valores, princípios e mecanismos”, da Organização dos Estados Americanos, OEA.

Curiosamente, a mesma OEA que, de forma quase pornográfica, avalizou o golpe na Bolívia com base numa falsa acusação de fraude eleitoral, desencadeada por grupos armados de extrema-direita e motins das polícias. Após um ano, o golpe fracassou. Inicialmente conseguiu afastar a esquerda do poder, mas as eleições lhe devolveram o mandato.

A guerra híbrida teve sucesso em Honduras, no Paraguai, no Brasil e na Bolívia. Porém, com exceção do Paraguai, foram vitórias efêmeras. As últimas eleições no continente demonstram que esta estratégia já não funciona mais. Até a antes inexpugnável Colômbia surpreendeu. Uma versão 4.0 do “método Jacarta” está em elaboração. [iv]

Se a oposição e os movimentos populares não se anteciparem, uma intentona golpista acontecerá. No dia 7 de setembro ou no dia 2 de outubro, com consequências imprevisíveis e alto risco de derramamento de sangue.

Teoria da conspiração? O tempo dirá.

Conhecemos este filme e o seu final. Sabemos o que eles fizeram no verão passado.

Charge do genial André Dahmer:

PS: No momento em que este artigo era finalizado, um jornalista do UOL –  outro reconvertido que difundiu falácias num verão passado, não devemos esquecer – foi muito feliz ao demonstrar a tática de dissimulação dos militares: https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2022/07/28/nao-caiam-na-conversa-do-general-sua-declaracao-e-golpista-nao-garantista.htm

[i] A nota do General Luiz Eduardo Rocha Paiva expressa bem o pensamento do generalato brasileiro https://jornalggn.com.br/politica/eleicoes-politica/a-comprovacao-dos-propositos-golpistas-do-ministro-da-defesa/

[ii] Um bom resumo destas especulações pode ser lida no artigo de Manuel Domingos Neto : https://www.brasil247.com/blog/futuro-duvidoso

[iii] Alguns artigos publicados recentemente na grande imprensa são preocupantes: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/07/26/cacs-ja-superam-total-de-pms-e-de-integrantes-das-forcas-armadas-em-todo-o-pais.htm

https://oglobo.globo.com/politica/acao-coordenada-por-grupos-bolsonaristas-no-telegram-no-whatsapp-impulsionou-postagens-contra-moraes-nas-redes-sociais-24410853

[iv] Jacarta, capital da Indonésia, denomina o método que em 1996 embasou um golpe brutal e um genocídio sem precedentes pelas mãos de militares e milícias. Para saber mais sobre o método Jacarta é imperdível ver o premiadíssimo documentário “O Ato de Matar”, disponível no Youtube. Aquele país se tornou o “paraíso das milícias”. Também é o título de um livro recentemente lançado no Brasil : https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-metodo-jacarta-outra-historia-da-guerra-fria)

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