As repúblicas bananeiras e as suas lendas urbanas (I): “os militares são altamente qualificados e preparados”.

No início de 2023, o prefeito da cidade de Maracanaú (CE)  nomeou o Capitão Wagner (candidato do “partido fardado” derrotado nas eleições ao governo do Estado) para a Secretaria de Saúde do município. Questionado sobre a falta de experiência do indicado para o cargo, o prefeito retrucou:  “militar sabe fazer tudo, inclusive saúde”.

O prefeito apenas reproduziu uma das lendas mais estúpidas que circulam sobre os militares: a de que eles são altamente preparados e qualificados. E de que seriam imunes aos esquemas de corrupção tão frequente nos meios políticos.

Supostamente, podemos admitir que eles são muito qualificados no que diz respeito às técnicas militares, nada além disso.  Mesmo assim, supostamente, porque há muito o Brasil não participa de guerras, cenários em que tais competências poderiam ser postas à prova. Recentemente, um portal de internet chinês (SOHU) fez um ranking das piores Forças Armadas do  mundo, considerando o potencial de desempenho militar numa situação de combate. Nossos bravos foram avaliados entre os quatros piores. A falta de investimentos em equipamentos e tecnologia pode ser uma explicação.  Mas a responsabilidade da cúpula militar também é grande, pelo seu insulamento burocrático e recusa a qualquer tipo de supervisão externa. Tudo isso contribui para uma formação militar anacrônica em muitos aspectos.

Não sejamos injustos. Há ações sociais implementadas pelos militares nos rincões do país merecedoras dos maiores elogios. Mas nada que os faça “superiores” ou os aponte como detentores a priori  de uma competência diferenciada em relação aos agentes civis.

O que há é somente uma crença autista deles próprios, de que são uma “elite”. Fora disso, há uma coleção de desastres na atuação militar. Vamos relembrar apenas alguns exemplos, restritos aos últimos quatro anos, período em que eles tomaram de assalto milhares de cargos civis de forma quase pornográfica, com um desempenho pífio, senão trágico, em muitas das vezes.

Podemos começar citando o caso do “aerococa”, o uso do avião presidencial para o tráfico de cocaína, que só foi interrompido graças a uma ação da polícia espanhola. Ou mesmo pela omissão da inteligência militar, para não falar de cumplicidade, no caso da perigosa vizinhança do ex-presidente no “Vivendas da Barra” (o caso Marielle permaneceu sem solução, por razões obscuras). O descaso, ou até a cumplicidade com os crimes na Amazônia, foi motivo de vergonhosa repercussão internacional.

Mas, sem dúvida alguma, o caso mais escandaloso de incompetência foi a gestão militar do Ministério da Saúde em plena pandemia. Uma sucessão de trapalhadas de causar estupor a qualquer nação civilizada.A começar pelo fato do ministro fardado declarar,  sem a menor cerimônia, que não sabia o que era o SUS. Porém o mais patético foi a justificativa da nomeação do general: ele seria um dos maiores especialistas de logística do exército brasileiro.

E foi exatamente na parte logística o grande fiasco da gestão militar nessa área. A mundialmente reconhecida estrutura vacinal, construída ao longo de vários governos, sobreviveu a duras penas, graças aos esforços dos governos estaduais e municipais. O SUS, desconhecido do ministro de coturno, impediu que a tragédia da pandemia fosse maior. Sobrevivieu ao erros grosseiros de “logística” na remessa de oxigênio para Manaus, aos gastos absurdos e irresponsáveis com a fabricação de um medicamento notoriamente inútil para combater a pandemia (cloroquina). Sem falar nas tentativas de negociatas na compra de vacinas, felizmente abortadas antes que arrombassem os cofres públicos em benefício de militares corruptos (sim, eles existem, e não são poucos).

Não satisfeitos, os intelectuais da caserna, em seu projeto de nação para 2035, defenderam abertamente o fim da universalização da saúde, a extinção do SUS e a ampla privatização da saúde. Para os cidadãos civis, obviamente. Para eles, militares, essas criaturas que se acham superiores aos demais mortais, preservariam seu sistema de saúde próprio.

E assim eles contribuem decisivamente para continuarmos a ser a maior república bananeira do planeta.

Confissões dos generais bananeiros: “-Não demos o golpe porque não quisemos.”

Em recente entrevista a um grande jornal, o número 2 do Comando Militar da nossa República Bananeira fez uma confissão em tanto. Um festival de “atos falhos”, no dizer “freudiano”.  Ao negar as intenções golpistas da caserna, atestou a existência do golpismo nas FFAA. E  reconheceu que a instituição teria sido “capturada por assuntos políticos”.

Na linguagem castrense existem expressões que são verdadeiros lugares comuns, usadas sempre que os militares desejam dissimular o seu caráter golpista. Uma delas é famosa:”quando a política entra pela porta de frente dos quartéis, a disciplina sai pelos fundos”.

Essa frase é sempre dita quando os militares são acusados de se intrometer na vida civil, no jogo político da nossa frágil democracia. Habitualmente ela tem sido atribuída ao General Góes Monteiro, golpista de primeira linha e notório por fazer cotidianamente articulações políticas e golpistas.De triste memória, foi um dos mentores do “Plano Cohen”, que dizia haver planos avançados para promover uma insurreição comunista no Brasil. Uma fake news antes que existisse esse nome, que foi o pretexto para fechar o Congresso e implantar a sanguinária ditadura do Estado Novo.

A frase de Góis Monteiro, portanto, é tão verdadeira quanto cínica. A hipocrisia é que ela é usada quando os militares bananeiros querem se esquivar da acusação de que buscam tutelar e interferir na vida civil, pelo simples fato de terem o poder das armas.

Política é o lugar do debate e da disputa democráticas de ideias. De fato, dentro do quartel a política não presta pra nada. Numa tropa não há lugar para dissenso nem negociação de pontos de vista divergentes. A eficácia das FFAA se baseia no estrito respeito à hierarquia e disciplina, no qual um manda outro obedece.Para o bem e para o mal.

Golpistas e conspiradores não traçam os seus planos dentro do quartel, mas sim nas cúpulas de comando, nas alcovas dos clubes  militares e, na atualidade , nas salas dos Think Tanks bananeiros (Institutos Sagres, Federalista, Villas-Boas).

O fato, que a cada dia fica mais claro nas investigações do “8 de janeiro”, é que os militares estavam doidinhos pra dar um golpe.  Porém foram muitos os problemas que os impediu de levar seus intuitos adiante.Um quase total isolamento internacional, apoio interno restrito à própria caserna, somado a um bando de alucinados,  vivandeiras de quartéis e alguns tresloucados do ogronegócio fechando rodovias e financiando atos. Foi pouco. E faltou mesmo o principal: a chancela do Tio Sam, ao qual são submissos. Em reportagem recente do Financial Times soubemos que os recados dados a eles foram claros e diretos. Os governantes democratas dos EUA deixaram nítido que não aceitariam um “mascote vira-lata” do Trump mantido no poder por vias golpistas.

Mesmo assim, os milicos não conseguiram controlar os seus impulsos golpistas. Tentaram criar um clima caótico que justificasse uma intervenção militar.  Espertamente, terceirizaram a linha de frente do golpe e atuaram de forma clandestina, com seus batalhões de operações especiais (os “Kids pretos”).  Conceberam uma operação tipo “Para-sar/Riocentro versão 4.0“, em que pudessem sair de mãos limpas da sujeira que estavam dispostos a patrocinar. Se cercaram de máximos cuidados. Sabiam que, em caso de fracasso, poderiam acabar como os generais bolivianos recentemente, ou pior,  como os generais argentinos em 1985.

Não funcionou. Agora tratam de limpar as pontas soltas e salvar os seus “irmãos por escolha” de  maiores punições (“irmãos por escolha” é o  título de um filme sonolento e patético que estão divulgando, uma espécie de “ninguém larga a mão de ninguém” do meio militar) . Ao mesmo tempo, ainda tentam preservar os seus espaços institucionais estratégicos (vide GSI). Sabe-se lá os recados e barganhas que estão sendo intermediados pelo submisso Ministro da Defesa.

Os milicos bananeiros-mamateiros ficarão recolhidos até que sintam que surgiu uma nova janela de oportunidade. E, principalmente, na expectativa de uma mudança de orientação do Tio Sam.

Permanece, no entanto, um perigo grave no ar: os terroristas militares. O caldo no qual  fermentou o Para-Sar e o Riocentro continua intacto. Já dissemos antes aqui neste blog: é aí que mora o perigo. Nada garante que celerados treinados para o terrorismo (os “Kids Pretos“) não resolvam se subelevar. Só nos resta torcer para que a bomba exploda no colo deles. Ou que não exploda, como a que foi colocada no aeroporto de Brasília,com intenções similares. Não sabemos até quando a incompetência deles nos salvará de uma tragédia maior. Para garantir a mamata da corporação (a intenção real por trás do que chamam de “combate ao comunismo”), esses “patriotas” serão capazes de provocar uma tragédia que roubem a vida milhares de  inocentes, de promoverem verdadeiras carnificinas. Apesar dos fracassos do passado, nunca desistiram desses planos, como prova a recente tentativa no aeroporto de Brasília.

Na maior República das Bananas do mundo, os terroristas militares seguem livres. E impunes, prontos para planejar novas insanidades.

Na República Bananeira, o golpismo vive à espreita

A cada nova revelação sobre os acontecimentos de 8 de janeiro, fica mais claro o quanto a milicada mamateira-bananeira deve estar contrariada por ter sido alijada do poder.  O golpe foi preparado com a discrição típica dos terroristas, de forma clandestina. Mas sempre ficam pontas soltas e a trama vai sendo revelada ao longo do tempo.
O alto comando sabia que não poderia se expor, porque não tinha o aval do Tio Sam. Porém permitiu que os mais radicais, os setores de inteligência e uma parte da média oficialidade tomassem as rédeas da iniciativa golpista. Se a instalação do caos fosse bem sucedida, fariam a intervenção com as “mãos limpas”. Se desse certo, poderiam se livrar de Lula e do Bozo ao mesmo tempo. Se desse errado, como deu, poderiam posar de legalistas. Como tentam fazer agora. Quem quiser que se iluda. A única preocupação deles agora é proteger os colegas de farda de punições severas.
A milicada bananeira–mamateira resiste a abrir mão de seu poder. A queda de braço agora é pelo controle da GSI. O lugar estratégico onde a trama golpista foi gestada.  A determinação em preservar esse espaço é a demonstração que o horizonte golpista permanece no horizonte da milicada.
Provavelmente viveremos um período similar aos anos entre os governos de JK e Jango. Veremos nos próximos anos tentativas de desestabilização constantes, a espera de uma tempestade perfeita, que reúna  crise econômica interna, classe média à beira de um ataque de nervos, cenário geopolítico favorável, entre outros fatores.
Não chega a ser estarrecedora a recente matéria de uma revista semanal que expõe o papel dos chamados “kids pretos” na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Coordenaram a invasão da Esplanada, dinamitaram torres de transmissão, escaparam do cerco sob proteção de seus superiores. Provaram que estão mais espertos, treinados e cuidadosos: dessa vez nenhuma bomba explodiu no colo de um deles. É aí que mora o perigo: os terroristas formados na caserna estão muito melhor preparados. Se quiserem novamente explodir uma represa ou gasômetro para matar milhares de cidadãos inocentes, talvez sejam bem sucedidos.
O golpismo tem um modus operandi pra lá de manjado. O que tivemos recentemente foi bem semelhante ao roteiro usado no “golpe dentro do golpe” que resultou no Ato Institucional No. 5, o famigerado AI-5, em 1968. Desta vez não deu certo, mas enganam-se os que pensam que os golpistas estão derrotados. Apenas se recolheram à espera de uma nova oportunidade.
Quem quiser saber mais detalhes das histórias passadas, recomendamos a leitura da excelente reportagem de Vasconcelo Quadros na Agência Pública (Atentados de direita fomentaram o AI-5)  e do livro “A direita explosiva do Brasil”, dos jornalistas José Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto Fortunato.
Há um episódio que guarda grandes semelhanças com os acontecimentos recentes. Em 1968, sob as orientações de um general de pijama, Paulo Trajano da Silva, do general Silvio Corrêa de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo e do general Jayme Portella, chefe da então Casa Militar da Presidência, um grupo terrorista praticou naquele ano uma série de atentados à bomba (17 comprovadamente) que as autoridades atribuiram à “esquerda”. O objetivo, bem sucedido à época, era fabricar pretextos para endurecer o regime.O grupo terrorista paramilitar  era chefiado por Aladino Félix um sujeito completamente desequilibrado, chegado a delírios messiânicos e  fanático anticomunista.  Usava o místico codinome “Sábado Dinotos”.Troque-se o nome dos generais citados por Braga Neto, Mourão e Heleno, e teremos um “remake” do mesmo filme. Ah, e ao invés da Casa Militar, leia-se GSI. Dentre os acampados nos quartéis não faltaram alucinados para o cargo messiânico de lider dos atentados.
Jamais escaparemos da sina de sermos uma eterna república bananeira se não tivermos uma profunda reforma nas instituições militares. Com a punição dos golpistas e profundas  transformações nas escolas de formação dos militares. Como bem disse recentemente um talentoso humorista, são escolas de formação de bolsonaros…Porém, conforme comentamos acima, os golpistas de hoje estão mais preparados: se anteciparam às críticas e produziram um documentário sobre a formação dos militares, recentemente lançado com destaque na principal rede de streaming.  Uma bizarrice que merecerá uma postagem à parte.

LIBERAIS E FASCISTAS: FRUTOS DO MESMO CACHO DA REPÚBLICA BANANEIRA

 

No passado, existiram militares bananeiros no Brasil que, ao menos, tinham sonhos desenvolvimentistas e um projeto de nação soberana. O anticomunismo arraigado não os impedia de promover o investimento estatal em indústrias de base estratégicas, inclusive visando o domínio do ciclo completo da  tecnologia nuclear e aeroespacial.

Curiosamente, com o fim da guerra fria, vimos os “intelectuais” da caserna abraçarem o mais tosco liberalismo que se conhece, o da escola austríaca. O DNA fascista dos nossos militares se casou perfeitamente com o neoliberalismo mais rastaqueiro.  Junte-se a isso o anseio por ampliar o acesso ao orçamento público para garantir mamatas descaradas para a caserna.  Esse casamento de conveniência deu no que deu: o desastre do bolsonarismo.

Repetindo o que publicamos em postagem anterior: o fascismo cresceu com as bênçãos do grande capital, pois serviu aos seus interesses. E pode sobreviver mesmo depois de derrotado pelo mesmo motivo. O nazifascismo pode ser ora funcional, ora disfuncional para os interesses do capital. Não por acaso que a ascensão do fascismo contou com a tolerância, senão entusiasmo, do pai do neoliberalismo, Ludwig Von Mises.

Em” “Liberalismo segundo a tradição clássica” (1927), Mises escreveu:

(…)”Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal.(…)” [ página 77 da edição brasileira]

E qual seria a “melhor das intenções”? A garantia e a promoção da propriedade privada e da livre iniciativa. Mises, temendo que a revolução bolchevique se alastrasse pela Europa, não hesitou em abraçar o nazifascismo.

Um político brasileiro de triste memória disse certa vez:” -Quer estuprar, estupra. Mas não mata!”. É a mesma lógica da escola austríaca:”- Quer sacrificar as liberdades individuais, sacrifique. Mas preserve a propriedade privada e o livre mercado!”

É certo que o saldo trágico do holocausto obrigou Mises e seus discípulos a recorrerem a certos malabarismos conceituais.  Passaram a refutar a barbárie nazifascista igualando-a ao stalinismo, todos enfiados no mesmo saco da categoria de “totalitarismo”. Nasceu aí a bizarrice conceitual de acusar os nazistas de serem “socialistas”, pois impunham a intervenção estatal no domínio da economia, tal como a URSS.

Nessa sofrível e distorcida operação intelectual, Mises acaba por revelar a concepção política dos neoliberais: o que iguala ou distingue regimes políticos ditatoriais dos democráticos seria o respeito à livre iniciativa e à propriedade privada. Foi essa ideia que garantiu ao nazifascismo uma avaliação mais tolerante de Mises. Ainda que ele condenasse as teorias de superioridade racial dos nazistas, não as via como o diferencial fundamental da barbárie.

No livro “Governo Onipotente“, escrito após a tragédia da guerra (1944), Mises condenava o ataque às liberdades individuais e o intervencionismo estatal dos “totalitários”, mas oferecia uma ressalva aos fascistas: estes, ao menos, respeitavam a propriedade privada. Mises faz um contorcionismo quase circense para, na essência, continuar a defender o mesmo fascismo que saudara antes do holocausto como uma espécie de “mal necessário”:

“El modelo alemán difiere del ruso en que, exterior y nominalmente, conserva la propiedad privada de los medios de producción y las apariencias de precios ordinarios, salarios y mercados. Pero ya no existen empresarios; no hay más que gerentes de empresa (Betriebsführers), que son quienes hacen las compras y las ventas, pagan a los obreros, contraen deudas y pagan intereses y amortizaciones. No existe el mercado de trabajo: los sueldos y salarios los fija el gobierno.(…)Es el gobierno, no el consumidor, quien dirige la producción. Se trata de un socialismo bajo la apariencia exterior del capitalismo. Se conservan algunas etiquetas de la economía de mercado, pero significan algo completamente distinto de lo que significan en la auténtica economía de mercado. (…)El sistema alemán tiene otra ventaja. Los capitalistas alemanes y los Betriebsführers, antiguos empresarios, no creen que el régimen nazi sea eterno. Están, por el contrario, convencidos de que el dominio de Hitler acabará un día y que entonces volverán a poseer las plantas industriales que en los días anteriores al nazismo eran de su propiedad.(…)”. [página 93 da edição  em espanhol]

Ou seja, se for para preservar o direito de propriedade, a barbárie se justifica. Se o intervencionismo estatal relegou aos proprietários ao papel de meros gerentes de suas empresas, ao menos eles estão seguros de que irão retomá-las num futuro breve. A base material para sobrevivência do liberalismo está assegurada sob a égide do nazifascismo.

Pobres empresários transformados em meros gerentes! Mises é de um cinismo estonteante (já que não podemos considerá-lo ingênuo). No livro recém-lançado no Brasil, “Bilionários Nazistas”, o seu autor David de Jong prova que os empresários alemães construíram imensas fortunas com a apropriação de empresas tomadas de judeus e uso em larga escala de trabalho escravo. Muito além de meros gerentes, convenhamos.

Essa concepção de Mises foi levada adiante por seus discípulos.  Em O caminho da Servidão Friedrich Hayek destila excrescências como essa:

“(…) Não temos, contudo, a intenção de converter a democracia em fetiche. (…) A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é, de modo algum, perfeita ou infalível. Tampouco devemos esquecer que muitas vezes houve mais liberdade cultural e espiritual sob os regimes autocráticos do que em certas democracias – e é concebível que, sob o governo de uma maioria muito homogênea e ortodoxa, o regime democrático possa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras. Não queremos dizer, contudo, que a ditadura leva inevitavelmente à abolição da liberdade, e sim que a planificação conduz à ditadura porque esta é o instrumento mais eficaz de coerção e de imposição de ideais, sendo, pois, essencial para que o planejamento em larga escala se torne possível. O conflito entre planificação e democracia decorre, simplesmente, do fato de que esta constitui um obstáculo à supressão da liberdade exigida pelo dirigismo econômico. Mas, ainda que a democracia deixe de ser uma garantia da liberdade individual, mesmo assim ela pode subsistir de algum modo num regime totalitário. (…) “. [página 93 da edição brasileira]

A argumentação é tortuosa e conduz a uma inversão curiosa: a democracia pode ser opressora e uma ditadura pode não  levar inevitavelmente à abolição da liberdade… Tudo um grande eufemismo para defender as ditaduras militares com as quais ele e seus discípulos colaboraram, de Salazar a Franco, de Stroessner a Pinochet. Afinal, estas ditaduras eram preferíveis às democracias que, ao combater as desigualdades sociais, ameaçavam os pilares do “livre mercado”. Esta é a razão do neoliberalismo sempre andar de mãos dadas com os neofascismos e os neonazismos. São como unha e carne.

Essa forma de julgar os regimes políticos pela ótica da economia de mercado, é reveladora do neoliberalismo. O aspecto mais trágico e deplorável do nazifascismo – a ideia de superioridade racial – é secundária para os neoliberais. Por isso historicamente o liberalismo conviveu tão bem com a escravidão e o colonialismo, com o extermínio dos povos originários. A tragédia vivida pelo povo Yanomami recentemente se insere perfeitamente nessa lógica neoliberal, que anseia pela exploração predatória da Amazônia (a “livre iniciativa” pela qual tanto clamam).

Para o neoliberalismo, vale tudo. Até mesmo a tolerância com a barbárie, quando “necessária” para os interesses da “economia de mercado”.  Aceitaram o nazifascismo como um mal necessário e temporário, pois foram funcionais para garantir a hegemonia do “livre mercado” quando este se vê ameaçado. Assim sempre estiveram ao lado de inúmeras ditaduras militares que sufocaram demandas da sociedade por mais justiça social.

Esta é a razão dos grandes jornais, porta-vozes do grande capital, serem tolerantes com os fascistas. Sabem que eles podem ser úteis num futuro próximo. A captura dos militares por este ideário foi um casamento perfeito para os neoliberais. É o que, na atualidade, assegura a longevidade da nossa República Bananeira, a maior do planeta.

***

Post scriptum

1) Não devemos colocar no mesmo saco o liberalismo clássico, que tem suas virtudes,  com o neoliberalismo da escola austríaca (hoje hegemônico). Noam Chomsky disse certa vez que os neoliberais não leram Adam Smith até o final, ou não defenderiam teses tão esdrúxulas.

2) Neoliberais e nazifascistas estão entre nós, e são muitos. Estão em todas as instituições da sociedade civil e na caserna. Só não são muitos nas instituições de natureza cultural, matéria a qual eles não são lá muito afeitos…Para eles, a crença em pseudo-intelectuais, alguns de bizarrice quase inacreditável (tal como o falecido astrólogo Olavo de Carvalho), satisfaz e acalma a face sádica deles. Sim, neoliberais são, em maior ou menor grau, criaturas sádicas.