Bananas Cinematográficas

Em 1983, o cineasta independente norte-americano Robert Altman dirigiu o filme“ Streamers”, adaptado do texto teatral de David Rabe, que no Brasil teve como título “O pequeno exército inútil”. A ação se passa toda dentro de um galpão, onde quatro recrutas e dois sargentos aguardam o embarque para o Vietnam. Durante esta espera emergem questões raciais e homossexuais entre os militares, com desfecho trágico. Os críticos viram no filme uma reflexão sobre os conflitos sociais presentes na sociedade norteamericana.

Que me perdoem os militares brasileiros honrados e conscientes de seu papel social (eles existem, acreditem!) mas se um cineasta resolvesse fazer o mesmo hoje no Brasil, uma crítica aos conflitos políticos e sociais da nossa república bananeira ambientada na caserna, o título poderia ser parafraseado: “O imenso exército inútil”.

Calma lá! Antes que joguem pedras, não se trata de ignorar aqui o importante serviço de interesse social que o exército brasileiro faz nos rincões do país. Não é pouca coisa, sejamos justos. Ademais, eles tem a missão hercúlea de vigiar as nossas imensas fronteiras, com pouco recursos e equipamentos obsoletos em boa parte das vezes. O que nos salva é que não sofremos ameaças de agressões externas de parte de outras nações.

Mas foi exatamente a ausência deste risco, de agressões por nações estrangeiras que queiram violar a nossa soberania, que deixou as nossas FFAA carentes de uma justificativa mais robusta e menos retórica para a sua existência em tempos de paz. Não é de se admirar que tenham sido facilmente cooptadas pela lógica da guerra fria: aderiram ao combate ao “comunismo”, traduzida na forma de um inimigo interno, já que os possíveis inimigos reais estariam a milhares de quilômetros de distância. A guerra fria acabou, mas esta visão anacrônica está até hoje entranhada nos documentos e doutrinas das instituições formadoras dos militares. Uma mentalidade que as impedem de adequarem os seus propósitos ao mundo multipolar que se desenha.

Se as nossas elites econômicas tivessem sido capazes de formular um projeto de desenvolvimento nacional e soberano, caberia as FFAA a missão de contribuir para assegurar a sua realização. Como isto nunca aconteceu, restou aos “pensadores” militares, além do viralatismo na relação com os EUA, abraçarem teses bizarras. Assim, a amazônia, nossa fronteira mais frágil e desguarnecida, virou o grande cavalo de batalha. O fantasma da “internacionalização” foi moldado de forma bem funcional ao pensamento predatório das nossas “pops” elites agrárias.  A ocupação irracional – antes nossa do que deles –  passou a ser tolerada. Assim a boiada foi passando: estrangeiros comprando cada vez mais fatias do nosso território, biopirataria comendo solta, prospecções geológicas disfarçadas de missão religiosa. Mas os doutrinadores militares difundiam  teses paranoicas: desde o risco de territórios de “nações” indígenas declararem a independência (estimuladas por ONGs ambientalistas) até, mais recentemente, o perigo de sofrermos uma invasão da França num futuro próximo a partir da Guiana.

Dizem que nos círculos militares da OTAN as gargalhadas abundaram quando tomaram conhecimento deste delírio, supostamente parte da Estratégia de Defesa Nacional. Diante do vexame anunciado, rapidamente algumas autoridades militares se pronunciaram negando o caráter oficial desta tese, informando que se tratava apenas de exercício de construção de cenários. Mas o estrago já estava feito.

O anticomunismo da guerra fria foi reavivado com o “suporte teórico” de uma mente visivelmente desequilibrada (Olavo de Carvalho) que elegeu o Foro de São Paulo como ameaça à nossa soberania. (Sugestão de reflexão: o que diria o Golbery do Couto e Silva do astrólogo da Virgínia?)

Isto acontece porque a caserna é uma “bolha”. Sem supervisão civil, sofre de autismo institucional. Talvez o melhor retrato do anacronismo destas instituições seja o concurso para o hino do Ministério da Defesa, realizado em pleno século XXI. A canção vencedora, em 2010, parece ter saído de algum baú de partituras do século XIX. (https://www.gov.br/defesa/pt-br/acesso-a-informacao/institucional-2/o-que-e-o-ministerio-da-defesa-1/hino-do-ministerio-da-defesa).

Desde a proclamação da República que as instituições militares incorporaram a ideia de que devem tutelar a vida civil. Essa concepção os colocou como uma presa fácil para servir a interesses geopolíticos externos e favorecer elites econômicas e corruptas que nunca tiveram um projeto de nação. Em alguns poucos momentos da nossa história até existiram militares que tinham uma visão da necessidade de um desenvolvimento nacional soberano. Um general chegou até a ser chamado de “gênio da raça” pelo cineasta mais brilhante que já tivemos (Gláuber Rocha, que foi massacrado por críticas após essa afirmação). Sem estes militares não teríamos desenvolvido a tecnologia nuclear e aeroespacial, por exemplo, coisa que o nosso “irmão do norte” nunca gostou (para dizer o mínimo).

Mas hoje nossos generais da ativa, numa amostra de profunda indigência intelectual, compactuam com a entrega de ativos econômicos estratégicos do país para o controle do “mercado”, submissos ao neoliberalismo mais vulgar. A suposta defesa da amazônia acaba por servir ao propósito de transformá-la numa grande Serra do Navio (1). O nacionalismo dos militares virou uma peça retórica, diluída num patriotismo tão exaltado quanto vazio. Igual ao anacrônico hino do Ministério da Defesa. Tudo isto nos brindou com um imenso exército sem causa. E um exército sem causa é um exército inútil. E perigoso, muito perigoso para os cidadãos brasileiros.

A situação das FFAA brasileiras na atualidade é um filme que já conhecemos o final. Já passou a hora de trocar os diretores e roteiristas deste filme, por outros que nos livrem deste desta desagradável condição de maior república bananeira do mundo.

(1) Sobre a exploração predatória da Serra do Navio: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/ap-apos-esgotamento-do-manganes-passivos-ambientais-e-perspectiva-economica-incerta-rondam-as-cidades-de-serra-do-navio-e-santana/

Quartelada 4.0 – “Bananadas again”

Desde a derrubada do presidente paraguaio Fernando Lugo, debate-se que a América Latina passou a ser vítima de um novo tipo de golpe, diferente das quarteladas do passado, que derrubavam os governos e sufocavam as democracias com tanques e tropas nas ruas.

Esse modelo de tomada do poder sempre foi característico das repúblicas das bananas latino-americanas. Quando não funcionava, havia sempre a mão amiga do Tio Sam, a intervenção militar dos EUA para resolver a questão.

O mundo civilizado sepultou este tipo de golpe. Foram tantos os crimes e abusos dos militares que esta tática foi abandonada. A pá de cal foi a queda da URSS, pondo fim à guerra fria que justificava o apoio externo aos golpes militares bananeiros.

A prisão na Europa do facínora Augusto Pinochet pôs um fim a esta via golpista.

A participação dos EUA na defesa de seus interesses geopolíticos passou a ser mais discreta. Ao invés de mandar seus fuzileiros, passou a financiar o treinamento das autoridade policiais e judiciárias para o uso da lawfare.

Desta forma, a articulação dos poderes legislativo, judiciário, militar e da mídia, com o uso da lawfare, passou a ser a nova forma de tirar do poder governos que desagradaram aos interesses geopolíticos do Império. Foi assim no Paraguai, Honduras, Brasil, Equador, Peru e Bolívia. Este último foi um didático ponto fora da curva: ficou demonstrado que a via golpista com protagonismo militar e interferência externa aberta – como foi a deplorável postura da OEA – não se sustenta por muito tempo.

Mas em nenhum lugar vimos algo parecido com o que aconteceu no Brasil. Algo que só foi possível por conta da impunidade dos agentes de estado que, quando no exercício do poder, cometeram crimes contra a humanidade.

O retorno dos militares, usando Bolsonaro como cavalo de troia, foi tramado com certa discrição. Mas, ao tomarem posse, deixaram de lado todos os pudores. A ocupação de cargos públicos se deu numa dimensão pornográfica. Nem a ditadura implantada em 1964 ousou tanto.

Arrogantes, achando-se moralmente superiores, arvoraram-se para ocupar funções para as quais nunca tiveram competência. O exemplo mais patéticoe trágico – foi a nomeação de um general “especialista em logística” para ser Ministro da Saúde. Num surto de sincericídio, que só a cegueira dos arrogantes permite, o general confessou que sequer sabia o que era o SUS – o vigoroso eixo sobre o qual se articula a política nacional de saúde. E isso no momento da maior crise sanitária da história do país.

O fiasco foi além de qualquer expectativa pessimista. A suposta eficiência logística ruiu com a troca primária na remessa de vacinas para os Estados e na incompetência para lidar com a crise da falta de oxigênio hospitalar. E ainda tiveram a humilhação de ver o vizinho execrado – a Venezuela – ser mais diligente no envio de um auxílio voluntário. E a tão propalada superioridade moral dos militares foi ridicularizada com o escândalo da corrupção das vacinas. Aliás, aqui testemunhamos o quão grave é a situação da nossa gigantesca república das bananas: os comandantes militares divulgaram nota indignada condenando o intuito de punir seus colegas fardados. Impunidade para os militares, acima de tudo e de todos.

Um dos principais cientistas políticos do mundo no século XX, ainda hoje referencia obrigatória neste domínio, foi o norteamericano Robert Dahl. Ele concebeu a democracia não como um sistema idealizado, mas como um arranjo político possível, realista, com várias gradações conforme a situação particular de cada país. Ele a chamou de Poliarquia, num livro que rapidamente se tornou um clássico.

Neste livro o autor é claro ao dizer que não é possível que se desenvolva uma democracia, ou uma Poliarquia, se os militares não forem contidos, se não estiverem submetidos ao poder civil. Traduzido para a realidade brasileira, este ensinamento explica a razão e a dimensão da nossa tragédia. As escolas militares, em suas doutrinas, defendem historicamente a tutela militar sobre o poder civil. Ou seja, enquanto isto não for alterado, estaremos condenados a ser uma gigantesca República das bananas. Pior: com agentes fardados livres para cometer crimes sob o manto da impunidade. Nenhum militar na Alemanha ousaria saudar Joseph Menghele. No Brasil, permitem que façam homenagens ao notório torturador Brilhante Ustra. É assim que as nossas FFAA contribuem para sermos a maior república das bananas do mundo.

José do Brasil

© 2021 É livre a reprodução total ou parcial

Bananas Assassinas

Muito já se escreveu sobre os crimes contra a humanidade cometidos pelos militares brasileiros após a quartelada de 1964. Quando uma nova conjuntura internacional os forçou a devolver o poder aos civis, exigiram que o manto da impunidade fosse lançado sobre todos aqueles crimes, que eles consideravam “crimes de gerra”. E a simples instalação de uma tímida Comissão da Verdade muito tempo depois, mesmo sem qualquer viés punitivista, serviu de estopim para um movimento de retomada do poder pelos militares. Para eles, o preço da liberdade (de cometer abusos) é a certeza da eterna impunidade.

Como o tempo não volta atrás, para interromper o ciclo da impunidade dos agentes do Estado é necessário centrar esforços na responsabilização de atos recentes. Se as FFAA não são mais agentes diretos de crimes contra a humanidade, ao menos por enquanto, isto não as impedem de serem cúmplices de outras barbáries cotidianas que permanecem impunes.

Os holofotes estão agora voltados para a tentativa de acobertar a gestão incompetente, criminosa e corrupta dos militares no Ministério da Saúde durante a pandemia de Covid-19. Porém, o caso mais sórdido de “operação abafa” dos militares brasileiros parece ter relação com a execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista.

O crime se deu durante a intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro. Muitos fazem a ilação de que, ao menos em parte, o crime foi uma reação à própria intervenção militar. Logo, confrontados de forma tão ignóbil, esperava-se dos militares uma reação mais dura, uma resposta rápida e eficaz. Com o total comando da segurança pública nas mãos, eles tinham o acesso a todos os bancos de dados e relatórios de inteligência das polícias civil e militar, além de seus próprios serviços de inteligência. Mas pouco fizeram. Preocupados talvez com o impacto das investigações no projeto de retorno ao poder pela via eleitoral, parece que optaram pela “vista grossa”, mesmo diante de um crime que teve repercussão internacional.

Quem sabe como uma investigação policial funciona, sabe também que muitas vezes chega-se aos mandantes do crime com relativa rapidez. Existe uma rede de informantes e de investigadores competentes sempre em ação. Mas nada é divulgado até que se tenha em mãos evidências irrefutáveis ou provas sólidas. E isto nem sempre é fácil. Por isso, quando um miliciano não quer ser incriminado, ele investe pesado numa “operação abafa”: executa possíveis denunciantes (queima de arquivo), corre para apagar rastros e destrói evidências materiais. E usa para isso todos os seus quadros infiltrados na máquina do estado, os agentes públicos corrompidos para sabotar as investigações.

No caso Marielle Franco foi isso que se viu, e ainda se vê, durante toda a investigação que se arrasta por mais de três anos.

O mais intrigante durante todo este processo, que pode ser visto na série documental produzida sobre o episódio, é a tentativa dos chefões da milícia de incriminarem uns aos outros. Que todos se digam inocentes, não é surpresa. Mas a tentativa de acusarem-se mutuamente, sugere a intenção de sacrificar um “boi de piranha”, para “solucionar” de uma vez o crime e deixá-los seguir com os seus negócios em paz. Escolhe-se alguém para “pagar o pato” e a vida segue.

Ou seja, tudo isso parece indicar que não foram os chefões da milícia carioca que conceberam o crime; talvez eles tenham tão somente oferecido a estrutura criminosa que possuem para operacionalizar a ação. E certamente o fizeram em troca de algum beneficio. Convenhamos que a alegada motivação de vingança pela ação do parlamentar Marcelo Freixo não justifica um crime tão sofisticado, ainda que seja um fator a ser considerado.

O crime ocorreu nas barbas dos chefes militares que comandavam a segurança pública na ocasião, hoje comodamente instalados no centro do poder político. Não é segredo para ninguém que o clã que ocupa a “casa de vidro” tem relações quase carnais com os criminosos da milícia carioca. E parece não haver dúvidas de que os que vestem uniformes verde-oliva tem total conhecimento destes fatos.

Nos últimos dias, o delegado responsável pelo caso Marielle foi substituído pela quarta vez, enquanto que as procuradoras que investigavam o caso pediram pra sair, denunciando constantes interferências e a frequente criação de obstáculos ao trabalho delas.

Assim, a operação abafa prossegue, descaradamente, a pleno vapor. Para proteger quem ou a quais interesses, não se sabe. Mas com todos os dados já divulgados, não dá para descartar a suspeita de que tem respingos de sangue nas fardas de alguns “patriotas”. Só que, na maior República das Bananas do mundo, isto não lhes causa vergonha.

Enquanto os mandantes deste crime hediondo não forem revelados e punidos jamais seremos um país merecedor de respeito do mundo civilizado.

José do Brasil

(C)2021.É livre a reprodução parcial ou integral.

Sobre bananas e bandeiras

As chamadas “repúblicas bananeiras” caracterizam-se, entre outras coisas, pela promoção do ufanismo, do nacionalismo extremo, pelo culto exacerbado aos símbolos nacionais, com destaque para o hino e a bandeira. Não é uma exclusividade destas repúblicas, nem o que as define enquanto bananeiras, mas é algo que sempre está presente nestes governos.

É também uma tática que encontramos em todos os fascismos nacionais ao longo da história. Neofascistas, racistas, xenófobos e neonazistas sempre agem da mesma maneira. Quem não exibe e exalta com o mesmo furor os símbolos nacionais é acusado de não ser patriota. Desta forma, toda a oposição democrata é tachada de impatriótica e as suas críticas são desqualificadas.

E esta tática tem funcionado em vários países pelo mundo. Nenhum humanista, nenhum democrata quer ser confundido com a barbárie difundida pela extrema-direita. E por esta razão muitos deixam de usar os símbolos nacionais, que acabam apropriados de forma quase exclusiva pelo que existe de mais deplorável no espectro político.

Muito se debate sobre a necessidade de recuperar estes símbolos que foram sequestrados e monopolizados pela extrema-direita. Porém, pelo que vemos nas manifestações de rua que buscam se diferenciar destes grupos, muita gente ainda demonstra uma grande resistência em portar a bandeira nacional. Alguns até se sentem desconfortáveis em vestir trajes com as cores nacionais.

Portanto, recuperar o significado dos símbolos nacionais pela ótica democrática é uma disputa que não é nada simples. Não basta ostentar publicamente estes símbolos para se contrapor ao sequestro dos mesmos pela extrema-direita. É preciso ressignificá-los. Um famoso “youtuber” e “inflluencer” percebeu isso no ano passado e lançou a ideia. Como fazer isso é a questão que se coloca.

A história da bandeira brasileira é bem curiosa a este respeito. O verde e amarelo, tão celebrado, tem origem monarquista. Foi encomendada ao artista francês Jean-Baptiste Debret por D. João VI para ser o pavilhão da realeza do Vice-Reino. Ainda que D. Pedro I tenha dito em certa feita que aquelas cores simbolizavam “a riqueza e a primavera eterna do Brasil”, a inspiração era bem outra. A cor verde era referência a casa real de Bragança e a amarela à casa de Habsburg-Lorena, da realeza austríaca. Respectivamente, as origens reais do imperador e da princesa Leopoldina. Não por outra razão, a bandeira encomenda por D. João VI pouco se difere da bandeira adotada pelo Brasil “independente”. Após a proclamação da república, entre as muitas propostas apresentadas, adotou-se o mesmo padrão visual, apenas redesenhando alguns dos elementos utilizados. Foram retirados os ramos e café e tabaco, a coroa imperial e o globo armilar com a cruz da Ordem de Cristo. Nos seus lugares  foram colocados um círculo azul com o Cruzeiro do sul e o lema positivista. As estrelas que simbolizavam as províncias viraram constelações representando as novas unidades federativas.

A bandeira, portanto, espelha perfeitamente a natureza das transformações politicas que o país sofreu, ou melhor, não sofreu. Foram mudanças negociadas pelas elites dominantes, sem qualquer participação popular. A independência foi obra da própria realeza. O mesmo príncipe que declarou a independência e se autoproclamou imperador, pouco depois voltou para Portugal e assumiu o trono real. Da mesma forma, a proclamação da república e o fim da monarquia foi fruto de um golpe dado por militares… monarquistas! Não causa espanto que a bandeira reflita em suas cores e formas esta peculiaridade. A ordem social do país pouco ou nada mudou nestes celebrados eventos históricos. Compreensível que a bandeira represente este fato.

Se a independência e a república tivessem sido fruto de rebeliões populares, a atual bandeira seria inconcebível. Talvez sobrevivesse tal como  a bandeira dos estados confederados norte-americanos, associada às elites agrárias, ao escravagismo, ao genocídio indígena, ao racismo, à extrema-direita.

Nos primeiros anos da república até que surgiram outras propostas para o pavilhão nacional. Alguns pretendiam imitar o padrão da bandeira dos EUA, com listras verdes e amarelas, que acabou adotada por alguns estados brasileiros (Goiás, Piauí e Sergipe). Mas também houve quem sugerisse as cores vermelha, branca e preta, em alusão as três etnias formadoras da nação (sugestões de Silva Jardim e do Barão do Rio Branco). O Marechal Floriano Peixoto, nos primeiros dias da república, teria ordenado que se aproveitasse inteiramente a bandeira da monarquia, apenas substituindo a coroa real por uma estrela vermelha, que era símbolo dos republicanos. Imaginem se essa ideia tivesse vingado, como alguns dos chauvinistas de hoje estariam se comportando em relação à bandeira nacional…

Ao que tudo indica, a nova bandeira da república não despertou maiores fulgores patrióticos na população. Além de pouco se diferenciar das bandeiras anteriores, o povo sempre foi mantido fora do processo politico. Conforme a clássica frase atribuída ao escritor Lima Barreto (“O Brasil não tem povo, tem público”), a população era uma mera espectadora das mudanças politicas.

Assim também foi com a Revolução de 30, que eternizou a famosa frase do governador de Minas Gerais à época (Antônio Carlos de Andrada): “façamos a revolução antes que o povo as faça”. O povo a que ele se referia era a classe trabalhadora que desde 1918 promovia greves gerais e intensas lutas socias. Os “revolucionários” apenas incorporaram as demandas da pequena e media burguesia que ascendia.  O rearranjo do poder entre as classes dominantes dipensou qualquer alteração na bandeira nacional.

O culto a bandeira se difundiu somente com o projeto politico do “Estado Novo”, que colocou em ação uma forte máquina de propaganda para a construção de um ideal de nacionalidade, uma identidade comum para o povo brasileiro, mantendo o povo trabalhador devidamente tutelado.

Ironicamente, essa identidade de povo, de sermos todos uma só nação, só foi mesmo plenamente alcançada com a difusão de um esporte que Lima Barreto abominava, por considerá-lo alienante: o futebol. Nos transformamos no país do futebol ou, no dizer de Nélson Rodrigues, a seleção brasileira se tornou a nossa pátria de chuteiras. Isso talvez explique o estranho paradoxo de como a camisa amarela, de uma entidade historicamente corrupta como a CBF, tenha se tornado uma espécie de uniforme das manifestações contra a corrupção.

Nessa batalha pelas bandeiras e símbolos nacionais há um outro estratagema que tem sido utilizado para estigmatizar os que se opõem aos desvarios da extrema-direita. Trata-se da difusão da palavra de ordem “nossa bandeira jamais será vermelha”. A intenção óbvia é a referência ao sempre execrado “comunismo”, e também pelo fato do vermelho ser a cor predominante nos símbolos dos partidos à esquerda do espectro político. É uma tática que faz parte da mesma estratégia, de acusar os que portam bandeiras vermelhas de não serem patriotas. Não importa o fato de que não existe ninguém propondo substituir a bandeira nacional por uma bandeira vermelha. Citando novamente o Nélson Rodrigues, ele dizia que o time pelo qual torcia apaixonadamente – o Fluminense – era o melhor do mundo. Para justificar, escreveu a máxima: se os fatos não confirmam esta verdade, pior para os fatos. O velho jornalista e dramaturgo já entendia muito bem a lógica das fake-news, expressão que ele nem chegou a conhecer.

O curioso nisso tudo é que não seria nenhum absurdo se a cor vermelha fizesse parte do pavilhão nacional. Afinal, o nome do país se deve a uma árvore que era abundante no litoral na época colonial, até que fosse praticamente extinta pela exploração irracional: o pau-brasil, cuja resina vermelha intensa era um corante altamente valorizado na europa. Brasil, inclusive, é uma palavra cuja etimologia remete à cor vermelha. Surpreende que esta cor não faça parte da bandeira nacional.

Além da já citada estrela vermelha sugerida pelo Marechal Floriano, o vermelho está na bandeira de uma das mais celebradas tentativas de independência nacional, a Inconfidência mineira, que foi adotada pelo Estado de Minas Gerais. Segundo historiadores, a cor do triângulo foi escolhida por associar-se a rupturas revolucionárias. E isto numa época em que Karl Marx nem tinha nascido.

A bandeira brasileira, nosso maior símbolo pátrio, deve ser sim, urgentemente, ressignificada. E isto não será alcançado apenas usando-a da mesma forma que a extrema-direita o faz. Ela tem que estar associada a outros valores civilizatórios.

Um exemplo de como isto é possível, e de forma incrivelmente original, encontra-se numa expressão da nossa cultura popular. A mais famosa escola de samba do país, a Estação Primeira de Mangueira, criou no desfile de 2019 uma versão própria do símbolo nacional. Aproveitou as mesmas formas e substituiu as cores originais pelas cores da agremiação (verde, rosa e branco). E no lugar do lema positivista, incluiu os principais agentes da construção do país (negros, índios e pobres) cuja representação sempre esteve ausente no pavilhão nacional. O enredo “Histórias que a história não conta”, propôs uma releitura da história do Brasil, ressignificando-a partir da perspectivas das classes populares.

Muito melhor que a camisa da CBF, convenhamos.

Enfim, muita coisa original pode ser criada, inclusive preservando as formas e cores utilizadas. A forma de losango era usada para ilustrar as “armas das damas”, um padrão usado para brasões e escudos femininos. Por isso a cor amarela da casa real de Habsburg, da imperatriz Leopoldina, preenche o losango da bandeira do Império. Para enfrentar uma extrema direita patriarcal, machista e misógina, eis aí um elemento que pode recuperado e ressignificado.

Outras combinações de cores também são possíveis. Como aquelas associadas ao pan-africanismo (verde/amarelo/vermelho), presente na maioria das bandeiras do continente africano. Ou ainda preto/vermelho/verde, da AUPN*. Afinal, somos o país de maior população afrodescente fora do continente africano

As possibilidades, portanto, são muitas. Cabe aos movimentos democráticos encontrarem formas criativas de utilizá-las.

José do Brasil
(C) 2021 É livre a reprodução parcial ou total.

*Associação Universal para o Progresso Negro ou UNIA (Universal Negro Improvement Association and African Communities League),organização internacional fundada pelo ativista Marcus Garvey.

PS: Na Wikipédia há a reprodução das várias versões da bandeira brasileira citadas (https://pt.wikipedia.org/wiki/Evolu%C3%A7%C3%A3o_da_bandeira_do_Brasil), exceto a chamada “bandeira militar” proposta pelo Marechal Floriano Peixoto,com a cruz vermelha simbolizando a república no lugar da coroa imperial.

O que é uma República Bananeira?

Em 1904, o escritor e humorista norte-americano Olivier Henry publicou o livro de contos Cabbages and Kings. As histórias se passavam num país fictício da América Latina, a Anchuria, que o autor dizia ser uma “República das Bananas”. Daí para diante esta expressão passou a ser usada para designar genericamente o que seria um típico país latino-americano. Em comum, o fato de serem caracterizados por uma economia baseada na exportação de poucos produtos agrícolas ou minérios, governados por ditaduras militares grotescas e políticos oportunistas. Tudo em benefício de uma pequena e retrógrada oligarquia de origem agrária. Países com uma elite minúscula vivendo na opulência, sem qualquer projeto de nação soberana, insensível ao sofrimento de legiões de pobres e miseráveis. Assim como a Anchuria.

O Brasil bem que tentou escapar deste destino. Em seus breves períodos democráticos houve a tentativa de promover uma industrialização, de se alcançar um desenvolvimento nacional soberano. Até mesmo nos períodos ditatoriais existiu alguma barganha pela modernização da base econômica do país, ainda que em troca de uma fidelidade canina aos interesses geopolíticos dos “irmãos do norte”. Mas estes processos de modernização nunca se consolidaram. Isto porque o crescimento econômico inevitavelmente gera demandas por uma melhor distribuição das riquezas, coisa que a mentalidade escravocrata herdada das oligarquias agrárias nunca conseguiu assimilar. Preferem a segurança do “fazendão” do que a modernidade que permite a ascensão social das classes menos favorecidas. Nossas elites nunca tiveram um projeto de nação, se contentando apenas em reproduzir em seu meio o modo de vida das elites das metrópoles coloniais. Ficam felizes com o sucesso da exportação de nossas “bananas”. Que um dia foi a cana-de-açúcar, depois o café, e atualmente é a soja. Como dizem repetidamente, “o agro é pop”.

Por um curto período de tempo pareceu que o país tinha se libertado deste destino trágico. Porém os acontecimentos dos últimos anos no Brasil demonstraram que, ao contrário do se pensava, o Brasil continua a ser uma grande “república bananeira”. Aliás, um pouco mais do que isso. Pela dimensão de seu território, da sua população e da sua economia, é a maior república das bananas do mundo. Não é uma grandeza a ser invejada, é bem verdade. Mas é um fato inconteste.

Além de ser a maior, também é a mais original. Ao invés das tradicionais e vergonhosas quarteladas, a retomada do poder pelos militares foi pela via eleitoral, usando um inusitado “cavalo de troia” como arma. Acontece que, quando se usa armamento de baixa qualidade, não é incomum que um tiro saia pela culatra. De repente, uma inimaginável coleção de personagens bizarros passaram ocupar os principais postos da república bananeira. Generais de pijama, fanáticos religiosos, sociopatas, oportunistas da pior estirpe e alguns casos nitidamente merecedores de tratamento psiquiátrico. Além de passar vergonha no cenário internacional, de se tornar motivo frequente de anedotas, o Brasil também virou uma preocupação mundial, diante da irresponsabilidade criminosa diante das questões ambientais e sanitárias.

Apesar do fiasco anunciado, as oligarquias bananeiras não entendem que o mundo mudou, que estão conduzindo o próprio país para um redemoinho que as arrastarão para o fundo de um mesmo poço. As repúblicas das bananas não sobreviverão ao Século XXI.

José do Brasil

© 2021 Livre a reprodução, total ou parcial.

Será que o acaso nos salvará novamente?

01 de julho de 2021

Bolsonaro tentará dar um golpe. São poucos os que ainda têm dúvidas a respeito disto. Analistas políticos, jornalistas, acadêmicos e parlamentares, entre outros, são quase unânimes a respeito disso. Até um general da reserva, que acabou enxotado deste governo que inicialmente apoiou, concorda e ainda acrescenta: pode acabar em violência1. Ainda que condenado ao fracasso, esta tentativa de golpe fará vítimas e deixará feridas dolorosas para o país.

Será que poderemos nos salvar deste golpe mais do que previsível? Ou ficaremos reféns do imponderável? Relembrar algumas das tentativas frustradas de golpe num passado não muito distante talvez possa nos ajudar a entender o cenário assustador que nos aguarda.

Em 1968, às vésperas da decretação do AI-5 pela ditadura militar, que assim liquidou com o que restava de democracia no país, foi cogitado uma outra forma de endurecer o regime, um outro tipo de “golpe dentro do golpe”. Militares liderados por um brigadeiro de triste memória, planejaram detonar bombas na represa de Ribeirão das Lajes e na Usina do Gasômetro do Rio de Janeiro. A catástrofe, que provocaria mais de cem mil de mortos, seria atribuída aos “comunistas”. A tragédia daria o pretexto para o extermínio físico de toda a oposição ao regime militar. Além dos militantes da esquerda, aqueles militares também planejaram eliminar Carlos Lacerda, Dom Hélder Câmara e Juscelino Kubitschek. O objetivo era eliminar toda e qualquer oposição ao regime2.

O golpe genocida só não foi adiante por conta da insubordinação do Capitão Sérgio Carvalho, que se recusou a participar da barbárie e denunciou o plano. Nem mesmo a indignação de outro lendário Brigadeiro, Eduardo Gomes, permitiu que os idealizadores deste crime hediondo fossem punidos. Só quem sofreu as consequências foi o Capitão Sérgio. Considerado louco, foi perseguido e teve a sua carreira militar destroçada.

Fomos salvos pelo acaso de, entre os quadros militares, termos naquele momento um heroico oficial que não aceitou compactuar com um genocídio.

Alguns anos depois, em 1981, militares inconformados com o processo de redemocratização do país, reativaram a ideia de implementar outro golpe criminoso. Desta feita, o plano seria detonar bombas num show comemorativo do 1o.de Maio, com a presença dos principais artistas da MPB e dezenas de milhares de jovens na plateia. O crime, cuidadosamente elaborado, incluía explodir uma bomba na central de energia do local do show (o centro de convenções Riocentro). Na escuridão, outras bombas deflagrariam o pânico. Além dos vitimados diretamente pelas explosões, entre o público e artistas da MPB, muitos morreriam pisoteados. Mas os militares encarregados de executar o atentado se atrapalharam. Uma das bombas explodiu no colo de um deles e assim a missão foi abortada. A cúpula militar abafou o caso e, mais uma vez, todos permaneceram impunes3.

O acaso a detonação acidental de uma das bombasnovamente nos salvou dos facínoras que usam farda.

Mesmo com os seus planos frustrados, estes militares criminosos fizeram escola. Em 1987 serviram de inspiração para um tenente que também planejou explodir bombas, desta feita dentro da própria caserna e na adutora do Rio Guandu. A motivação era mais pragmática, meramente corporativa: protestar contra os soldos baixos. Para não fugir à regra, a impunidade mais uma vez triunfou. O líder do movimento foi “punido” com a passagem para a reserva e subiu de patente. Daí o “capitão” partiu para uma bem-sucedida carreira política4.

O binômio “hierarquia e disciplina”, tão repetido pelos generais, oculta uma grande falácia. Os fatos citados deixam claro que a impunidade para os casos mais graves foi devidamente naturalizada entre os militares brasileiros, que se recusam a dar satisfações públicas a quem lhes paga os salários: o povo brasileiro. mesmo os ingênuos esperavam um desfecho diferente no recente caso do general Pazuello5.

Os militares brasileiros nunca aceitaram de bom grado a devolução do poder aos civis. Ao contrário do que se passou nos países vizinhos, aqui eles negociaram a transição do poder em troca de total impunidade para os seus. Por isso, quando da instalação da tímida Comissão da Verdade, que visou apenas trazer à luz da História os crimes que foram cometidos por agentes do Estado, a indignação tomou conta dos oficialato. Ressentidos, estes militares se articularam para retornar ao poder. Nada mais simbólico do que escolher o discípulo “bombástico” para liderá-los. E foram vitoriosos. As invés das quarteladas do passado, implementaram umgolpe militar 4.0”, usando um “cavalo de Troia”. Aliás, nunca a metáfora do quadrúpede foi tão apropriada.

De impunidade em impunidade, de degradação em degradação moral dos quadros militares, chegamos onde chegamos. Do tráfico de drogas no avião da comitiva presidencial ao circo de horrores encenado pela gestão de um general colocado à frente do Ministério da Saúde, coroado pelo escândalo das vacinas Covaxin, temos um retrato trágico das nossas forças armadas (que, num caso extremo de autismo, se enxergam com uma elite, como uma reserva moral do país, pasmem!). Fechados em sua “bolha” da caserna, não se dão conta de que, graças a eles, somos vistos no exterior como a maior e mais patética “república das bananas” do mundo na atualidade. perdemos para Myanmar. Por enquanto.

Há fortes indícios de que, desta vez, a tentativa de “golpe dentro do golpe” será parcialmente “terceirizada”. Além de alguns quadros amotinados da própria caserna, confiantes na tradicional impunidade que a corporação militar lhes garante, o golpe contará com parte das PMs estaduais e com o apoio das milícias do crime organizado, este subproduto dos órgãos militares de repressão politica criados pela ditadura. Isto sem falar dos fanatizados armados e do possível uso de mercenários (fenômeno que está se difundindo pelo mundo).

Será que mais uma vez dependeremos do acaso para nos salvar de um golpe criminoso? Sabemos que não podemos contar com as nossas instituições, historicamente frágeis, acovardadas, quando não coniventes. E nem podemos sonhar com uma resistência vigorosa que parta de uma dividida e fragilizada oposição. Pior: nos faltam oficiais na ativa da estirpe moral do capitão Sérgio Carvalho, que se recusem a emporcalhar a própria farda e que tenham a coragem impedir uma barbárie. Será que seremos vítimas de um “tenentismo miliciano”?

Os militares, confortavelmente instalados e bem remunerados nos gabinetes do Poder Executivo (aos milhares!), provavelmente vão assistir de camarote ao espetáculo dantesco que se anuncia. Depois dirão que não tiveram nada a ver com isso e que estão prontos para recolocar o país de volta à ordem constitucional. Obviamente, com a garantia da manutenção de seus cargos polpudos na máquina governamental e, para não fugir à tradição, a impunidade para os terroristas que usam farda. O apaixonado discurso patriótico, como de hábito, serve para dissimular a ânsia pelas benesses salariais e privilégios que o poder lhes dá.

Ao que tudo indica, só nos resta torcer para que o acaso nos salve mais uma vez destes irresponsáveis e insanos.

José do Brasil
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Post Scriptum: Logo após esta publicação, uma nova matéria jornalistica revelou como a impunidade está entranhada nas cúpulas militares: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/em-10-anos-stm-puniu-1-general-e-arquivou-20-investigacoes-de-altas-patentes.shtml

PS2: A vida na maior república das bananas do mundo não fica sem atualização. Mais uma página infeliz da história do Brasil: pra que não restem dúvidas, em uma Nota Oficial os militares brasileiros reafirmaram que não aceitam que seus quadros sejam punidos. Nem mesmo por um crime de corrupção que permitiu a morte evitável de centenas de milhares de brasileiros. Até mesmo um general “dissidente” se soma à impunidade (https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/nao-existe-banda-podre-das-forcas-armadas-reage-general-santos-cruz/)