Sobre bananas e bandeiras

As chamadas “repúblicas bananeiras” caracterizam-se, entre outras coisas, pela promoção do ufanismo, do nacionalismo extremo, pelo culto exacerbado aos símbolos nacionais, com destaque para o hino e a bandeira. Não é uma exclusividade destas repúblicas, nem o que as define enquanto bananeiras, mas é algo que sempre está presente nestes governos.

É também uma tática que encontramos em todos os fascismos nacionais ao longo da história. Neofascistas, racistas, xenófobos e neonazistas sempre agem da mesma maneira. Quem não exibe e exalta com o mesmo furor os símbolos nacionais é acusado de não ser patriota. Desta forma, toda a oposição democrata é tachada de impatriótica e as suas críticas são desqualificadas.

E esta tática tem funcionado em vários países pelo mundo. Nenhum humanista, nenhum democrata quer ser confundido com a barbárie difundida pela extrema-direita. E por esta razão muitos deixam de usar os símbolos nacionais, que acabam apropriados de forma quase exclusiva pelo que existe de mais deplorável no espectro político.

Muito se debate sobre a necessidade de recuperar estes símbolos que foram sequestrados e monopolizados pela extrema-direita. Porém, pelo que vemos nas manifestações de rua que buscam se diferenciar destes grupos, muita gente ainda demonstra uma grande resistência em portar a bandeira nacional. Alguns até se sentem desconfortáveis em vestir trajes com as cores nacionais.

Portanto, recuperar o significado dos símbolos nacionais pela ótica democrática é uma disputa que não é nada simples. Não basta ostentar publicamente estes símbolos para se contrapor ao sequestro dos mesmos pela extrema-direita. É preciso ressignificá-los. Um famoso “youtuber” e “inflluencer” percebeu isso no ano passado e lançou a ideia. Como fazer isso é a questão que se coloca.

A história da bandeira brasileira é bem curiosa a este respeito. O verde e amarelo, tão celebrado, tem origem monarquista. Foi encomendada ao artista francês Jean-Baptiste Debret por D. João VI para ser o pavilhão da realeza do Vice-Reino. Ainda que D. Pedro I tenha dito em certa feita que aquelas cores simbolizavam “a riqueza e a primavera eterna do Brasil”, a inspiração era bem outra. A cor verde era referência a casa real de Bragança e a amarela à casa de Habsburg-Lorena, da realeza austríaca. Respectivamente, as origens reais do imperador e da princesa Leopoldina. Não por outra razão, a bandeira encomenda por D. João VI pouco se difere da bandeira adotada pelo Brasil “independente”. Após a proclamação da república, entre as muitas propostas apresentadas, adotou-se o mesmo padrão visual, apenas redesenhando alguns dos elementos utilizados. Foram retirados os ramos e café e tabaco, a coroa imperial e o globo armilar com a cruz da Ordem de Cristo. Nos seus lugares  foram colocados um círculo azul com o Cruzeiro do sul e o lema positivista. As estrelas que simbolizavam as províncias viraram constelações representando as novas unidades federativas.

A bandeira, portanto, espelha perfeitamente a natureza das transformações politicas que o país sofreu, ou melhor, não sofreu. Foram mudanças negociadas pelas elites dominantes, sem qualquer participação popular. A independência foi obra da própria realeza. O mesmo príncipe que declarou a independência e se autoproclamou imperador, pouco depois voltou para Portugal e assumiu o trono real. Da mesma forma, a proclamação da república e o fim da monarquia foi fruto de um golpe dado por militares… monarquistas! Não causa espanto que a bandeira reflita em suas cores e formas esta peculiaridade. A ordem social do país pouco ou nada mudou nestes celebrados eventos históricos. Compreensível que a bandeira represente este fato.

Se a independência e a república tivessem sido fruto de rebeliões populares, a atual bandeira seria inconcebível. Talvez sobrevivesse tal como  a bandeira dos estados confederados norte-americanos, associada às elites agrárias, ao escravagismo, ao genocídio indígena, ao racismo, à extrema-direita.

Nos primeiros anos da república até que surgiram outras propostas para o pavilhão nacional. Alguns pretendiam imitar o padrão da bandeira dos EUA, com listras verdes e amarelas, que acabou adotada por alguns estados brasileiros (Goiás, Piauí e Sergipe). Mas também houve quem sugerisse as cores vermelha, branca e preta, em alusão as três etnias formadoras da nação (sugestões de Silva Jardim e do Barão do Rio Branco). O Marechal Floriano Peixoto, nos primeiros dias da república, teria ordenado que se aproveitasse inteiramente a bandeira da monarquia, apenas substituindo a coroa real por uma estrela vermelha, que era símbolo dos republicanos. Imaginem se essa ideia tivesse vingado, como alguns dos chauvinistas de hoje estariam se comportando em relação à bandeira nacional…

Ao que tudo indica, a nova bandeira da república não despertou maiores fulgores patrióticos na população. Além de pouco se diferenciar das bandeiras anteriores, o povo sempre foi mantido fora do processo politico. Conforme a clássica frase atribuída ao escritor Lima Barreto (“O Brasil não tem povo, tem público”), a população era uma mera espectadora das mudanças politicas.

Assim também foi com a Revolução de 30, que eternizou a famosa frase do governador de Minas Gerais à época (Antônio Carlos de Andrada): “façamos a revolução antes que o povo as faça”. O povo a que ele se referia era a classe trabalhadora que desde 1918 promovia greves gerais e intensas lutas socias. Os “revolucionários” apenas incorporaram as demandas da pequena e media burguesia que ascendia.  O rearranjo do poder entre as classes dominantes dipensou qualquer alteração na bandeira nacional.

O culto a bandeira se difundiu somente com o projeto politico do “Estado Novo”, que colocou em ação uma forte máquina de propaganda para a construção de um ideal de nacionalidade, uma identidade comum para o povo brasileiro, mantendo o povo trabalhador devidamente tutelado.

Ironicamente, essa identidade de povo, de sermos todos uma só nação, só foi mesmo plenamente alcançada com a difusão de um esporte que Lima Barreto abominava, por considerá-lo alienante: o futebol. Nos transformamos no país do futebol ou, no dizer de Nélson Rodrigues, a seleção brasileira se tornou a nossa pátria de chuteiras. Isso talvez explique o estranho paradoxo de como a camisa amarela, de uma entidade historicamente corrupta como a CBF, tenha se tornado uma espécie de uniforme das manifestações contra a corrupção.

Nessa batalha pelas bandeiras e símbolos nacionais há um outro estratagema que tem sido utilizado para estigmatizar os que se opõem aos desvarios da extrema-direita. Trata-se da difusão da palavra de ordem “nossa bandeira jamais será vermelha”. A intenção óbvia é a referência ao sempre execrado “comunismo”, e também pelo fato do vermelho ser a cor predominante nos símbolos dos partidos à esquerda do espectro político. É uma tática que faz parte da mesma estratégia, de acusar os que portam bandeiras vermelhas de não serem patriotas. Não importa o fato de que não existe ninguém propondo substituir a bandeira nacional por uma bandeira vermelha. Citando novamente o Nélson Rodrigues, ele dizia que o time pelo qual torcia apaixonadamente – o Fluminense – era o melhor do mundo. Para justificar, escreveu a máxima: se os fatos não confirmam esta verdade, pior para os fatos. O velho jornalista e dramaturgo já entendia muito bem a lógica das fake-news, expressão que ele nem chegou a conhecer.

O curioso nisso tudo é que não seria nenhum absurdo se a cor vermelha fizesse parte do pavilhão nacional. Afinal, o nome do país se deve a uma árvore que era abundante no litoral na época colonial, até que fosse praticamente extinta pela exploração irracional: o pau-brasil, cuja resina vermelha intensa era um corante altamente valorizado na europa. Brasil, inclusive, é uma palavra cuja etimologia remete à cor vermelha. Surpreende que esta cor não faça parte da bandeira nacional.

Além da já citada estrela vermelha sugerida pelo Marechal Floriano, o vermelho está na bandeira de uma das mais celebradas tentativas de independência nacional, a Inconfidência mineira, que foi adotada pelo Estado de Minas Gerais. Segundo historiadores, a cor do triângulo foi escolhida por associar-se a rupturas revolucionárias. E isto numa época em que Karl Marx nem tinha nascido.

A bandeira brasileira, nosso maior símbolo pátrio, deve ser sim, urgentemente, ressignificada. E isto não será alcançado apenas usando-a da mesma forma que a extrema-direita o faz. Ela tem que estar associada a outros valores civilizatórios.

Um exemplo de como isto é possível, e de forma incrivelmente original, encontra-se numa expressão da nossa cultura popular. A mais famosa escola de samba do país, a Estação Primeira de Mangueira, criou no desfile de 2019 uma versão própria do símbolo nacional. Aproveitou as mesmas formas e substituiu as cores originais pelas cores da agremiação (verde, rosa e branco). E no lugar do lema positivista, incluiu os principais agentes da construção do país (negros, índios e pobres) cuja representação sempre esteve ausente no pavilhão nacional. O enredo “Histórias que a história não conta”, propôs uma releitura da história do Brasil, ressignificando-a partir da perspectivas das classes populares.

Muito melhor que a camisa da CBF, convenhamos.

Enfim, muita coisa original pode ser criada, inclusive preservando as formas e cores utilizadas. A forma de losango era usada para ilustrar as “armas das damas”, um padrão usado para brasões e escudos femininos. Por isso a cor amarela da casa real de Habsburg, da imperatriz Leopoldina, preenche o losango da bandeira do Império. Para enfrentar uma extrema direita patriarcal, machista e misógina, eis aí um elemento que pode recuperado e ressignificado.

Outras combinações de cores também são possíveis. Como aquelas associadas ao pan-africanismo (verde/amarelo/vermelho), presente na maioria das bandeiras do continente africano. Ou ainda preto/vermelho/verde, da AUPN*. Afinal, somos o país de maior população afrodescente fora do continente africano

As possibilidades, portanto, são muitas. Cabe aos movimentos democráticos encontrarem formas criativas de utilizá-las.

José do Brasil
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*Associação Universal para o Progresso Negro ou UNIA (Universal Negro Improvement Association and African Communities League),organização internacional fundada pelo ativista Marcus Garvey.

PS: Na Wikipédia há a reprodução das várias versões da bandeira brasileira citadas (https://pt.wikipedia.org/wiki/Evolu%C3%A7%C3%A3o_da_bandeira_do_Brasil), exceto a chamada “bandeira militar” proposta pelo Marechal Floriano Peixoto,com a cruz vermelha simbolizando a república no lugar da coroa imperial.