Bananas Cinematográficas

Em 1983, o cineasta independente norte-americano Robert Altman dirigiu o filme“ Streamers”, adaptado do texto teatral de David Rabe, que no Brasil teve como título “O pequeno exército inútil”. A ação se passa toda dentro de um galpão, onde quatro recrutas e dois sargentos aguardam o embarque para o Vietnam. Durante esta espera emergem questões raciais e homossexuais entre os militares, com desfecho trágico. Os críticos viram no filme uma reflexão sobre os conflitos sociais presentes na sociedade norteamericana.

Que me perdoem os militares brasileiros honrados e conscientes de seu papel social (eles existem, acreditem!) mas se um cineasta resolvesse fazer o mesmo hoje no Brasil, uma crítica aos conflitos políticos e sociais da nossa república bananeira ambientada na caserna, o título poderia ser parafraseado: “O imenso exército inútil”.

Calma lá! Antes que joguem pedras, não se trata de ignorar aqui o importante serviço de interesse social que o exército brasileiro faz nos rincões do país. Não é pouca coisa, sejamos justos. Ademais, eles tem a missão hercúlea de vigiar as nossas imensas fronteiras, com pouco recursos e equipamentos obsoletos em boa parte das vezes. O que nos salva é que não sofremos ameaças de agressões externas de parte de outras nações.

Mas foi exatamente a ausência deste risco, de agressões por nações estrangeiras que queiram violar a nossa soberania, que deixou as nossas FFAA carentes de uma justificativa mais robusta e menos retórica para a sua existência em tempos de paz. Não é de se admirar que tenham sido facilmente cooptadas pela lógica da guerra fria: aderiram ao combate ao “comunismo”, traduzida na forma de um inimigo interno, já que os possíveis inimigos reais estariam a milhares de quilômetros de distância. A guerra fria acabou, mas esta visão anacrônica está até hoje entranhada nos documentos e doutrinas das instituições formadoras dos militares. Uma mentalidade que as impedem de adequarem os seus propósitos ao mundo multipolar que se desenha.

Se as nossas elites econômicas tivessem sido capazes de formular um projeto de desenvolvimento nacional e soberano, caberia as FFAA a missão de contribuir para assegurar a sua realização. Como isto nunca aconteceu, restou aos “pensadores” militares, além do viralatismo na relação com os EUA, abraçarem teses bizarras. Assim, a amazônia, nossa fronteira mais frágil e desguarnecida, virou o grande cavalo de batalha. O fantasma da “internacionalização” foi moldado de forma bem funcional ao pensamento predatório das nossas “pops” elites agrárias.  A ocupação irracional – antes nossa do que deles –  passou a ser tolerada. Assim a boiada foi passando: estrangeiros comprando cada vez mais fatias do nosso território, biopirataria comendo solta, prospecções geológicas disfarçadas de missão religiosa. Mas os doutrinadores militares difundiam  teses paranoicas: desde o risco de territórios de “nações” indígenas declararem a independência (estimuladas por ONGs ambientalistas) até, mais recentemente, o perigo de sofrermos uma invasão da França num futuro próximo a partir da Guiana.

Dizem que nos círculos militares da OTAN as gargalhadas abundaram quando tomaram conhecimento deste delírio, supostamente parte da Estratégia de Defesa Nacional. Diante do vexame anunciado, rapidamente algumas autoridades militares se pronunciaram negando o caráter oficial desta tese, informando que se tratava apenas de exercício de construção de cenários. Mas o estrago já estava feito.

O anticomunismo da guerra fria foi reavivado com o “suporte teórico” de uma mente visivelmente desequilibrada (Olavo de Carvalho) que elegeu o Foro de São Paulo como ameaça à nossa soberania. (Sugestão de reflexão: o que diria o Golbery do Couto e Silva do astrólogo da Virgínia?)

Isto acontece porque a caserna é uma “bolha”. Sem supervisão civil, sofre de autismo institucional. Talvez o melhor retrato do anacronismo destas instituições seja o concurso para o hino do Ministério da Defesa, realizado em pleno século XXI. A canção vencedora, em 2010, parece ter saído de algum baú de partituras do século XIX. (https://www.gov.br/defesa/pt-br/acesso-a-informacao/institucional-2/o-que-e-o-ministerio-da-defesa-1/hino-do-ministerio-da-defesa).

Desde a proclamação da República que as instituições militares incorporaram a ideia de que devem tutelar a vida civil. Essa concepção os colocou como uma presa fácil para servir a interesses geopolíticos externos e favorecer elites econômicas e corruptas que nunca tiveram um projeto de nação. Em alguns poucos momentos da nossa história até existiram militares que tinham uma visão da necessidade de um desenvolvimento nacional soberano. Um general chegou até a ser chamado de “gênio da raça” pelo cineasta mais brilhante que já tivemos (Gláuber Rocha, que foi massacrado por críticas após essa afirmação). Sem estes militares não teríamos desenvolvido a tecnologia nuclear e aeroespacial, por exemplo, coisa que o nosso “irmão do norte” nunca gostou (para dizer o mínimo).

Mas hoje nossos generais da ativa, numa amostra de profunda indigência intelectual, compactuam com a entrega de ativos econômicos estratégicos do país para o controle do “mercado”, submissos ao neoliberalismo mais vulgar. A suposta defesa da amazônia acaba por servir ao propósito de transformá-la numa grande Serra do Navio (1). O nacionalismo dos militares virou uma peça retórica, diluída num patriotismo tão exaltado quanto vazio. Igual ao anacrônico hino do Ministério da Defesa. Tudo isto nos brindou com um imenso exército sem causa. E um exército sem causa é um exército inútil. E perigoso, muito perigoso para os cidadãos brasileiros.

A situação das FFAA brasileiras na atualidade é um filme que já conhecemos o final. Já passou a hora de trocar os diretores e roteiristas deste filme, por outros que nos livrem deste desta desagradável condição de maior república bananeira do mundo.

(1) Sobre a exploração predatória da Serra do Navio: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/ap-apos-esgotamento-do-manganes-passivos-ambientais-e-perspectiva-economica-incerta-rondam-as-cidades-de-serra-do-navio-e-santana/