LIBERAIS E FASCISTAS: FRUTOS DO MESMO CACHO DA REPÚBLICA BANANEIRA

 

No passado, existiram militares bananeiros no Brasil que, ao menos, tinham sonhos desenvolvimentistas e um projeto de nação soberana. O anticomunismo arraigado não os impedia de promover o investimento estatal em indústrias de base estratégicas, inclusive visando o domínio do ciclo completo da  tecnologia nuclear e aeroespacial.

Curiosamente, com o fim da guerra fria, vimos os “intelectuais” da caserna abraçarem o mais tosco liberalismo que se conhece, o da escola austríaca. O DNA fascista dos nossos militares se casou perfeitamente com o neoliberalismo mais rastaqueiro.  Junte-se a isso o anseio por ampliar o acesso ao orçamento público para garantir mamatas descaradas para a caserna.  Esse casamento de conveniência deu no que deu: o desastre do bolsonarismo.

Repetindo o que publicamos em postagem anterior: o fascismo cresceu com as bênçãos do grande capital, pois serviu aos seus interesses. E pode sobreviver mesmo depois de derrotado pelo mesmo motivo. O nazifascismo pode ser ora funcional, ora disfuncional para os interesses do capital. Não por acaso que a ascensão do fascismo contou com a tolerância, senão entusiasmo, do pai do neoliberalismo, Ludwig Von Mises.

Em” “Liberalismo segundo a tradição clássica” (1927), Mises escreveu:

(…)”Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal.(…)” [ página 77 da edição brasileira]

E qual seria a “melhor das intenções”? A garantia e a promoção da propriedade privada e da livre iniciativa. Mises, temendo que a revolução bolchevique se alastrasse pela Europa, não hesitou em abraçar o nazifascismo.

Um político brasileiro de triste memória disse certa vez:” -Quer estuprar, estupra. Mas não mata!”. É a mesma lógica da escola austríaca:”- Quer sacrificar as liberdades individuais, sacrifique. Mas preserve a propriedade privada e o livre mercado!”

É certo que o saldo trágico do holocausto obrigou Mises e seus discípulos a recorrerem a certos malabarismos conceituais.  Passaram a refutar a barbárie nazifascista igualando-a ao stalinismo, todos enfiados no mesmo saco da categoria de “totalitarismo”. Nasceu aí a bizarrice conceitual de acusar os nazistas de serem “socialistas”, pois impunham a intervenção estatal no domínio da economia, tal como a URSS.

Nessa sofrível e distorcida operação intelectual, Mises acaba por revelar a concepção política dos neoliberais: o que iguala ou distingue regimes políticos ditatoriais dos democráticos seria o respeito à livre iniciativa e à propriedade privada. Foi essa ideia que garantiu ao nazifascismo uma avaliação mais tolerante de Mises. Ainda que ele condenasse as teorias de superioridade racial dos nazistas, não as via como o diferencial fundamental da barbárie.

No livro “Governo Onipotente“, escrito após a tragédia da guerra (1944), Mises condenava o ataque às liberdades individuais e o intervencionismo estatal dos “totalitários”, mas oferecia uma ressalva aos fascistas: estes, ao menos, respeitavam a propriedade privada. Mises faz um contorcionismo quase circense para, na essência, continuar a defender o mesmo fascismo que saudara antes do holocausto como uma espécie de “mal necessário”:

“El modelo alemán difiere del ruso en que, exterior y nominalmente, conserva la propiedad privada de los medios de producción y las apariencias de precios ordinarios, salarios y mercados. Pero ya no existen empresarios; no hay más que gerentes de empresa (Betriebsführers), que son quienes hacen las compras y las ventas, pagan a los obreros, contraen deudas y pagan intereses y amortizaciones. No existe el mercado de trabajo: los sueldos y salarios los fija el gobierno.(…)Es el gobierno, no el consumidor, quien dirige la producción. Se trata de un socialismo bajo la apariencia exterior del capitalismo. Se conservan algunas etiquetas de la economía de mercado, pero significan algo completamente distinto de lo que significan en la auténtica economía de mercado. (…)El sistema alemán tiene otra ventaja. Los capitalistas alemanes y los Betriebsführers, antiguos empresarios, no creen que el régimen nazi sea eterno. Están, por el contrario, convencidos de que el dominio de Hitler acabará un día y que entonces volverán a poseer las plantas industriales que en los días anteriores al nazismo eran de su propiedad.(…)”. [página 93 da edição  em espanhol]

Ou seja, se for para preservar o direito de propriedade, a barbárie se justifica. Se o intervencionismo estatal relegou aos proprietários ao papel de meros gerentes de suas empresas, ao menos eles estão seguros de que irão retomá-las num futuro breve. A base material para sobrevivência do liberalismo está assegurada sob a égide do nazifascismo.

Pobres empresários transformados em meros gerentes! Mises é de um cinismo estonteante (já que não podemos considerá-lo ingênuo). No livro recém-lançado no Brasil, “Bilionários Nazistas”, o seu autor David de Jong prova que os empresários alemães construíram imensas fortunas com a apropriação de empresas tomadas de judeus e uso em larga escala de trabalho escravo. Muito além de meros gerentes, convenhamos.

Essa concepção de Mises foi levada adiante por seus discípulos.  Em O caminho da Servidão Friedrich Hayek destila excrescências como essa:

“(…) Não temos, contudo, a intenção de converter a democracia em fetiche. (…) A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é, de modo algum, perfeita ou infalível. Tampouco devemos esquecer que muitas vezes houve mais liberdade cultural e espiritual sob os regimes autocráticos do que em certas democracias – e é concebível que, sob o governo de uma maioria muito homogênea e ortodoxa, o regime democrático possa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras. Não queremos dizer, contudo, que a ditadura leva inevitavelmente à abolição da liberdade, e sim que a planificação conduz à ditadura porque esta é o instrumento mais eficaz de coerção e de imposição de ideais, sendo, pois, essencial para que o planejamento em larga escala se torne possível. O conflito entre planificação e democracia decorre, simplesmente, do fato de que esta constitui um obstáculo à supressão da liberdade exigida pelo dirigismo econômico. Mas, ainda que a democracia deixe de ser uma garantia da liberdade individual, mesmo assim ela pode subsistir de algum modo num regime totalitário. (…) “. [página 93 da edição brasileira]

A argumentação é tortuosa e conduz a uma inversão curiosa: a democracia pode ser opressora e uma ditadura pode não  levar inevitavelmente à abolição da liberdade… Tudo um grande eufemismo para defender as ditaduras militares com as quais ele e seus discípulos colaboraram, de Salazar a Franco, de Stroessner a Pinochet. Afinal, estas ditaduras eram preferíveis às democracias que, ao combater as desigualdades sociais, ameaçavam os pilares do “livre mercado”. Esta é a razão do neoliberalismo sempre andar de mãos dadas com os neofascismos e os neonazismos. São como unha e carne.

Essa forma de julgar os regimes políticos pela ótica da economia de mercado, é reveladora do neoliberalismo. O aspecto mais trágico e deplorável do nazifascismo – a ideia de superioridade racial – é secundária para os neoliberais. Por isso historicamente o liberalismo conviveu tão bem com a escravidão e o colonialismo, com o extermínio dos povos originários. A tragédia vivida pelo povo Yanomami recentemente se insere perfeitamente nessa lógica neoliberal, que anseia pela exploração predatória da Amazônia (a “livre iniciativa” pela qual tanto clamam).

Para o neoliberalismo, vale tudo. Até mesmo a tolerância com a barbárie, quando “necessária” para os interesses da “economia de mercado”.  Aceitaram o nazifascismo como um mal necessário e temporário, pois foram funcionais para garantir a hegemonia do “livre mercado” quando este se vê ameaçado. Assim sempre estiveram ao lado de inúmeras ditaduras militares que sufocaram demandas da sociedade por mais justiça social.

Esta é a razão dos grandes jornais, porta-vozes do grande capital, serem tolerantes com os fascistas. Sabem que eles podem ser úteis num futuro próximo. A captura dos militares por este ideário foi um casamento perfeito para os neoliberais. É o que, na atualidade, assegura a longevidade da nossa República Bananeira, a maior do planeta.

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Post scriptum

1) Não devemos colocar no mesmo saco o liberalismo clássico, que tem suas virtudes,  com o neoliberalismo da escola austríaca (hoje hegemônico). Noam Chomsky disse certa vez que os neoliberais não leram Adam Smith até o final, ou não defenderiam teses tão esdrúxulas.

2) Neoliberais e nazifascistas estão entre nós, e são muitos. Estão em todas as instituições da sociedade civil e na caserna. Só não são muitos nas instituições de natureza cultural, matéria a qual eles não são lá muito afeitos…Para eles, a crença em pseudo-intelectuais, alguns de bizarrice quase inacreditável (tal como o falecido astrólogo Olavo de Carvalho), satisfaz e acalma a face sádica deles. Sim, neoliberais são, em maior ou menor grau, criaturas sádicas.