
O acaso, as coincidências ou, como diria Maquiavel, a fortuna, prega peças inesperadas. Essa semana os roteiristas da ópera bufa Brasil ficaram atordoados. Foram muitos os acontecimentos inesperados.
– Os neofascistas do Congresso, avessos a qualquer regulação das bigtechs, se viram em apuros. A defesa da “liberdade de expressão” (que eles entendem como “liberdade de difamação”) foi atropelada pela explosiva denúncia da exploração de menores de idade, atividade que enche os cofres das redes da Meta e do Google. Apesar da resistência dos neofascistas, a lei de “desadultização” foi aprovada. Ficou ruim para boa parte dos que se auto intitulam “defensores da família” compactuarem publicamente com facilidades para pedófilos;
– Uma operação da Polícia Federal desbaratou um esquema bilionário do PCC nas fintechs da Faria Lima. A falácia de acusar a esquerda de defender o crime organizado perdeu força. Descobriu-se que a cúpula do crime está encastelada na meca dos financiadores das campanhas dos neofascistas. A PF só não descobriu isso antes por conta das dificuldades criadas pelos mesmos neofascistas do Congresso, que usaram fake news para sabotar a proposta de fiscalização do PIX. A pergunta que não quer calar: – Teria sido uma ação encomendada para aqueles parlamentares?;
– A revista internacional que é a bíblia dos neoliberais, em matéria de capa, deu um esculacho fenomenal no ex-presidente golpista. Na verdade, mandou um recado: colaboradores dessa estirpe não queremos mais. Nem que prometa entregar a direção da economia para o Campos Neto, o Paulo Guedes da vez. Escolham alguém que não seja tão deplorável e abjeto. Esqueçam a ideia de anistiá-lo. Tratem de deixar o caminho livre para o MAGA-Thorsício e seu martelo privatizador;
– Às vésperas da ação policial, e de forma quase cronometrada, ocorreu um movimento intenso da bancada neofascista para aprovar uma PEC que sujeitaria qualquer investigação de crimes comuns dos parlamentares à aprovação prévia de seus pares. Ou seja, um mandato parlamentar seria um caminho para a garantia de impunidade não só para os corruptos do orçamento secreto, mas também para estupradores, assassinos e traficantes. Em paralelo, soubemos que a ação da PF vazou, o que permitiu que muitos mandatos de prisão não fossem efetivados. “Coincidências” às vezes são fulminantes. A PEC que estava pronta para ser votada foi abandonada abruptamente, até por alguns de seus patrocinadores. Vai que o eleitorado junta lé com cré, não é mesmo?
Enfim, muito material a ser explorado no combate ao neofascismo. Mas o otimismo deve ser moderado. O fascismo conquistou corações e mentes muito além de qualquer racionalidade. Pelo menos 45% do eleitorado seguirá fiel ao neofascismo. Porque ele se alimenta de um caldo cultural que está na base da formação do nosso país. Os que atuam de forma inescrupulosa continuam a colher seus frutos, independente dos fatos.
Atribui-se ao general Jarbas Passarinho uma frase que demoveu os que ainda resistiam à edição do AI-5, o ato que radicalizou a ditadura militar em 1968. Teria dito ele ao general presidente Costa e Silva, “– Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” Eram tempos em que, até mesmo os generais, tinham algum escrúpulo a ser descartado. Não muitos, é bem verdade. Mas na atualidade já não há mais qualquer pudor. Vivemos uma era no Brasil que está muito mais além de simplesmente mandar os escrúpulos às favas.
Para os bolzofascistas, civis ou militares, vale tudo, qualquer golpe baixo, qualquer ataque covarde, baseado em mentiras e deturpações. Tudo é uma questão de oportunidade. “Vale tudo” aliás, é um remake em cartaz de novela que bem retrata o “espírito do tempo”, o nosso “zeitgeist”. Só que, na novela da vida real, nada garante punição para os vilões e redenção para os virtuosos ao final. Assistimos ao abandono de quaisquer escrúpulos e, pior, a naturalização destas ações pela grande imprensa “isentona”.
Pouco tempo atrás, tivemos uma grande polêmica após o ataque a uma estátua do Borba Gato. O bandeirante é a personificação do impulso predador do colonizador que invadiu, matou e estuprou o gentio sem dó nem piedade, sempre em busca de riqueza pessoal (há cínicos que os chamam de desbravadores que ajudaram a construir a nação…). O mito dos bandeirantes sintetiza um traço na cultura dos nossos empreendedores-predadores, que ainda hoje invadem, matam, estupram e escravizam, mesmo ao arrepio da Lei e do Estado de Direito. São garimpeiros e grileiros, sonegadores e fraudadores, devastadores do meio-ambiente, fascistas e golpistas de todas as estirpes. Atuam sempre para eliminar os limites à sua predação. O recém aprovado PL da devastação é fruto disso, assim como foi o desmonte da CLT e a liberação desenfreada de agrotóxicos no governo passado. Os exemplos são muitos.
E essa característica bandeirante infelizmente rasga, de cima para baixo, todo o nosso tecido social. O sucesso eleitoral da familícia deve-se a isso. Ela está presente não só nos tubarões, mas também na arraia-miúda, que nos últimos tempos vem sendo chamada de “pobre de direita”. Aquele pobre que se espelha nos “bem sucedidos” para fugir da sua condição social vulnerável. E o faz porque vê a ausência de escrúpulos naturalizada e premiada. Na base da pirâmide social os pastores evangélicos oferecem a libertação do sentimento de culpa dos católicos e pregam a busca de prosperidade individual. Aliados aos neofascistas, se apegam a bandeiras de ordem moral para tirar o foco das causas reais dos problemas sociais. Só que o falso moralismo deles transborda diariamente. Dizem defender os valores da família, mas relativizam a misoginia, o feminicídio, o abuso e a exploração de crianças e adolescentes. Vez por outra são flagrados em situações constrangedoras, dando razão à genial máxima de Nelson Rodrigues: “– Tarado é um sujeito normal pego em flagrante”. Vai do bizarro caso da Flordelis ao pastor investigador de peruca e calcinha.
Os microempreendedores-predadores tem forte antipatia pelo bolsa família e demais programas sociais. Porém, inescrupulosos que são, adeptos do vale tudo, não perdem a oportunidade de recorrer a fraudes para usufruir dos benefícios que condenam. Os exemplos vão dos milionarios que se declaram pobres para cursarem uma universidade gratuitamente aos que, depois de alugarem um carro, urinam no tanque de gasolina para devolver à locadora o veículo totalmente “abastecido”.
Não se trata de um comportamento novo ou desconhecido de nós. Nos anos 70 publicitários exploraram o mote “- O negócio é levar vantagem em tudo, certo?” , que ficou conhecida como “Lei de Gérson” (o craque da Copa de 70 que protagonizou o anúncio de marca de cigarros ficou com essa pecha, coitado).
Sim, os espertos voltaram com tudo. Naturalizada a esperteza, perderam a vergonha e expressam a sua hipocrisia sem qualquer pudor. Expressam indignação diante da corrupção, mas de forma seletiva. Só a veem em agentes públicos que colocam limites ao seu empreendedorismo-predador. Qualquer regulação é acusada de “inibir investimentos que geram empregos”. Essa revolta desaparece diante das incontáveis falcatruas de empresários que são exemplos de sucesso. Cedo ou tarde, emergem fatos reveladores sobre a construção de seus negócios: mestres da sonegação de impostos, corruptores de agentes públicos, especialistas em fraudes contábeis, uso desenfreados de isenções e subsídios do mesmo Estado que dizem que “atrapalha”. Fiquemos só nos casos famosos: Eric Batista, Lojas Americanas, Havan e os recentes casos da Ultrafarma e Colombo. Corruptos são somente os outros, principalmente se estiverem ao lado de quem defenda a redução da desigualdade social. Para esses não há perdão.
Porém não devemos reduzir os nossos dilemas a uma questão meramente moral. O aviltamento do ser humano oprimido decorre das suas condições materiais da sua existência. E a dita esquerda, de uma forma geral, tem se mostrado por demais incompetente para disputar uma hegemonia no campo das ideias e conquistar uma ampla maioria que empurre o neofascismo de volta para dentro do armário.
Oportunidades para desfraldar bandeiras emancipadoras não faltam. O recente sucesso do professor comunista nas redes sociais acaba de demonstrar isso. O que falta é a virtu maquiaveliana.
Ainda há tempo, mas não muito.